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Li a cartilha da editora Kaleo para a Assembleia de Deus de Santa Catarina, inteira, antes de ler o chilique jornalístico do The Intercept, publicado em 20 de setembro. E sigo me perguntando se a redação desse grande jornal foi instalada no planeta Terra ou pelo menos aqui perto, na Lua.
O que defende a “cartilha raivosa” dos crentes catarinenses, como a rotularam os autores da pérola jornalística? Em essência, coisas de crentes. Coisas que se ouvem (em versões incultas, concedo) nos corredores das igrejas, em seus grupos on-line e em suas casas: que o marxismo é ateísta, que o todo com as partes sabidamente doentes do PNDH-3 foram coisa de Lula et caterva, que a revolução sexual é incompatível com a religião cristã, que a cultura do movimento LGBTQIA+ é incompatível com a religião cristã, que segundo a Bíblia Deus criou homem e mulher – e o gênero não pode ser separado do sexo biológico –, que o feminismo ajudou a aumentar o número de divórcios, que o divórcio deve ser combatido, que a esquerda tende a descurar, quando não destruir ativamente, a instituição familiar etc.
Ademais, essa perspectiva geral sempre foi ensinada, de um jeito ou de outro, em todas as grandes igrejas, e alguns dos pontos acima são ensinados até mesmo por aquelas igrejas mais modernizadas e abertas a alguns valores progressistas. Então, por que o chilique?
Porque isso pode afetar... as eleições, quem diria!
Não havendo incitação ao ódio a pessoas, nem à violência, nem à subversão da democracia, as igrejas estão no seu direito. Os pastores estão no seu direito. As escolas dominicais estão no seu direito, e os pais que mandam seus filhos para lá estão no seu direito
É claro que a teologia das igrejas sempre afetou, afeta e deve mesmo afetar as eleições. A teologia cristã afeta tudo, seja ela bem-feita ou malfeita. A teologia calvinista favoreceu as revoluções constitucionais na Europa. A teologia dos puritanos racistas os fez legitimar a escravidão nos EUA. A teologia dos “cristãos alemães” os fez apoiar Hitler. A teologia dos Quakers, dos metodistas e de alguns anglicanos os fez abolicionistas, como foi o caso do grande William Wilberforce. A teologia de São João Crisóstomo o fez defender o direito dos pobres. A teologia de Bartolomeu de las Casas o fez defender os índios. A Teologia da Libertação fez o PT se fantasiar como “o partido de Deus” e desestabilizar o país. A teologia da “igreja confessante” a fez produzir a declaração de Barmen, contra a manipulação estatal e ideológica do regime nazista, e por isso a maior parte dos seus signatários foi enviada por Hitler para o front oriental, onde morreram congelados ou nas baionetas russas.
E é a ateologia progressista – incluindo a conversa fiada de que os evangélicos são companheiros desorientados, que o problema é a liderança, e eles que só precisam de um bom pastor para votar corretamente e retornar ao aprisco revolucionário – o que está por trás da crítica serelepe levantada pelo Intercept.
Tenho minhas críticas à cartilha. Penso que ela não deveria ter recomendado o conservadorismo como o ponto de partida da visão cristã de ética e sociedade, sem mais. E essa é a minha crítica teológico-política: isso está simplesmente errado, e eu disse isso diretamente a um dos pastores responsáveis pelo documento. Tratei disso aqui na Gazeta, quando apontei o fato incontornável de que a libertação de Israel do Egito, relatada no Êxodo, envolveu o desmantelamento de um discurso de ordem idólatra e uma batalha de Deus contra os opressores. A fé bíblica afirma uma ordem criacional, mas às vezes tem uma posição “revolucionária” (não no sentido marxiano, evidentemente) diante do establishment.
Seja qual for a teologia política cristã, ela precisará balancear claramente Criação e Êxodo, conservação e transformação. Como fazer isso é outra história, que não cabe desfiarmos aqui.
Mas suponhamos que eu esteja certo e a cartilha tenha errado a mão nesse ponto; nada muda, absolutamente. A Igreja Católica há séculos desenvolve a sua doutrina social, revisando e refinando suas posições, e já condenou tanto o marxismo ateu quanto o capitalismo laissez-faire. A Doutrina Social da Igreja trata a família como célula básica da sociedade, e condena todos os pecados que o Intercept costuma celebrar. Como eu já mencionei antes e insisto, toda igreja tem o direito de ensinar a sua doutrina àqueles que quiserem ser seus membros, e os pais têm o direito de dar a seus filhos a educação religiosa e moral de sua preferência. Não havendo incitação ao ódio a pessoas, nem à violência, nem à subversão da democracia, as igrejas estão no seu direito. Os pastores estão no seu direito. As escolas dominicais estão no seu direito, e os pais que mandam seus filhos para lá estão no seu direito.
E aí está a raiz da reportagem raivosa da Intercept: o que incomodou não foram os erros na cartilha dos crentes, mas os seus acertos. O documento que eles atacam rejeita ideias morais caras à esquerda.
É claro que a teologia das igrejas sempre afetou, afeta e deve mesmo afetar as eleições. A teologia cristã afeta tudo, seja ela bem-feita ou malfeita
A cartilha faz algumas generalizações realmente enervantes, como quando condena o feminismo em bloco ou quando culpa o “marxismo cultural” por toda a desordem no campo da ética sexual, como se o liberalismo e o capitalismo não tivessem culpa nenhuma (e eu mesmo já fiquei, por assim dizer, roxo de tanto discutir o tema nessa coluna). Nesse caso, no entanto, os jornalistas deveriam ser jornalistas e apontar os erros. Os erros. Mas o que eles fazem é puxar alguns fios soltos para condenar o discurso inteiro.
Consideremos o subtítulo da matéria, que vai direto no calcanhar de Aquiles da cartilha: associar o feminismo à zoofilia é mesmo demais. Mas e quanto à pedofilia? Também o seria, não fosse a própria Simone de Beauvoir uma defensora da descriminalização da pedofilia. Que azar, gente! Então, me pergunto: do que esses jornalistas estão reclamando? O trabalho deles não é entregar informação?
O que a matéria faz, no melhor estilo do jornalismo contemporâneo, é acusar uma “raiva santa”, um “ódio” etc., sentimentalizando a coisa. Mentira, a cartilha não é raivosa; é apenas explícita sobre o valor das ideias: algumas ideias merecem ser ignoradas, e algumas são tão ruins que merecem ser detestadas. Ora, meus amigos, ninguém tem de respeitar ideias que lhe parecem detestáveis. O candomblecista não tem de respeitar o monoteísmo; ele tem de respeitar os monoteístas. O marxista não tem de respeitar o conservadorismo; ele tem de respeitar os conservadores. E os cristãos não têm de respeitar as degenerações morais da esquerda brasileira. Eles têm, sim, de representá-las do modo mais honesto possível, ao fazer suas críticas; mas respeitá-las? Oh, céus! Que fanfarronice!
Algumas ideias merecem ser ignoradas, e algumas são tão ruins que merecem ser detestadas. Ora, ninguém tem de respeitar ideias que lhe parecem detestáveis
Reivindico, aqui, os meus direitos de cidadão e meus deveres de evangélico: a agenda moral da esquerda brasileira é detestável. Críticas desonestas contra a infeliz são dignas de toda a reprovação, mas poderia isso redimi-la da sua feiura natural? Não obstante a incompetência da crítica evangélica conservadora, a geringonça não vale um tostão.
Tivesse eu poderes para tanto, declararia aberta a temporada das cartilhas eclesiásticas! E pra já mesmo, a partir de segunda-feira. Que as igrejas formem comissões teológicas e componham suas cartilhas de doutrina social e política, para crianças, jovens, adolescentes, mulheres, homens e idosos. Que as igrejas leiam e discutam em seus grupos essas denúncias jornalísticas desesperadas, e exponham de casa em casa esses órgãos ideológicos metidos a magistério teológico.
O candomblecista não tem de respeitar o monoteísmo; ele tem de respeitar os monoteístas. O marxista não tem de respeitar o conservadorismo; ele tem de respeitar os conservadores. E os cristãos não têm de respeitar as degenerações morais da esquerda brasileira
E, em vez de se infiltrar nas igrejas estabelecidas, a militância laicista pode dar um trato mais honroso ao seu recalque. Ela pode também plantar suas igrejas sem Deus, formar suas famílias sem biologia, fazer suas orações de punho cerrado, ensinar seus filhos a “amar” (pegar) todo mundo no fim de semana, e esperar alegremente o Sol, que é para todos, virar uma gigante vermelha e engolir a Terra, junto com sua utopia igualitária.
Mas enquanto não chega esse tão esperado dia, vamos honrar John Locke, John Stuart Mill, a nossa Constituição, e aprender a tolerar uns aos outros. Afinal, só Deus poderia curar nossas divergências; mas até nisso nós divergimos, não é?
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos