Quanto mais trabalho aos domingos, menos tempo para família e igreja.| Foto: Eli Vieira com Dall-E
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Foi em 2007, quando era ainda um estudante na comunidade L’Abri no Reino Unido, que ouvi pela primeira vez sobre o Jubilee Center e seus esforços para alimentar reflexões e políticas públicas de inspiração cristã, mas ouvi a história de um brasileiro mesmo. Enquanto conversávamos sobre exemplos concretos de iniciativas públicas cristãs, o amigo Rodolfo Amorim mencionou a campanha “Keep Sunday Special” (“mantenha o domingo especial”), que me deixou fascinado.

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Em 1986, o governo liberal de Margaret Thatcher introduziu um projeto de lei no Parlamento para remover a regulamentação parlamentar contra a abertura de comércios no domingo para a Inglaterra e País de Gales. A regulamentação em vigor à época datava de 1950, proibia às lojas a venda de uma série de produtos, e parecia muito defasada. Thatcher esperava encontrar, naturalmente, uma grande oposição da esquerda e do Partido Trabalhista, mas se viu surpreendida com a resistência articulada dos conservadores sociais, derrotando a proposta na House of Commons. Por incrível que pareça, foi a única vez que um projeto da Dama de Ferro foi completamente derrotado na Casa. Mas os liberais não desistiriam, e a desregulamentação viria a ser obtida oito anos depois, embora não de forma irrestrita.

O que pouca gente sabe é que os conservadores sociais alcançaram essa vitória contra os liberais sob forte inspiração cristã – e aí entra a atuação do Jubilee Center. Prevendo que a política antirregulatória dos liberais abriria o domingo para a sanha capitalista, o pensador e empreendedor social Michael Schluter lançou em 1985, por meio do Jubilee, a campanha para proteger o domingo; juntamente com Christopher Townsend, ele publicou um livreto intitulado Keep the Sunday Special – o quinto paper produzido pelo instituto. No texto eles se dirigem aos cristãos: discutem várias peças de evidência bíblica e teológica sobre a necessidade de proteger o domingo; expõem os muitos efeitos destrutivos da desregulamentação para a economia, para as relações sociais e a família, e o impacto negativo nos ritmos de vida e na religião; e, finalmente, detalham os argumentos jurídicos. A conclusão é límpida:

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“O tema do comércio no domingo é digno de luta simplesmente a fim de preservar o domingo para a adoração, a família e a recreação. Esses são valores positivos na vida que deveríamos promover. Mas há mais do que isso. A característica mais alarmante da desregulação das horas de comércio é o número de precedentes que serão estabelecidos. O desrespeito pelo bem-estar da igreja se tornará aberto. A vida familiar será colocada sob outra pressão. Os desejos materiais dos prósperos e os lucros das entidades corporativas atuantes terão a prioridade sobre as necessidades humanas daqueles com baixa renda e pouca influência. Uma questão de consciência será tratada como política partidária a despeito do desconforto de muitos parlamentares. Uma larga mudança social, alterando uma estabelecida característica da vida britânica, terá sido introduzida sem que isso houvesse jamais sido mencionado no manifesto do partido político responsável por introduzi-la. Acima de tudo, o Parlamento terá rejeitado, de forma visível e simbólica, a noção de que princípios cristãos deveriam informar e influenciar a legislação. Para onde a nossa sociedade está indo?”

O capitalismo deseja sequestrar o corpo dos homens, mas não pode fazê-lo sem capturar sua imaginação. E o melhor modo de capturar os dois ao mesmo tempo é sequestrar a temporalidade e os ritmos da vida

O trecho é irretocável. Não há, no documento, qualquer defesa de uma obrigatoriedade da observância religiosa no domingo; o ponto é que há uma prática social estabelecida que produz benefícios para a religião, a família e a sociedade como um todo, e que, quando há ressonância entre a religião e o bem comum, a prudência precisa governar a legislação e a política pública. Trata-se de um argumento perfeitamente social e trabalhista, e perfeitamente cristão e conservador.

E foi um argumento muito bem informado, por sinal. Com um doutorado pela Cornell, Schluter atuou como economista no Banco Mundial e no International Food Policy Research Institute, e propôs em 1993, com o economista e professor da Universidade de Princeton David Lee, a hipótese de que a falta de priorização do fator relacional estaria por trás de uma enorme série de problemas, desde o nível interpessoal até o das relações internacionais, sustentando que uma abordagem ética e intencional para a restauração das relações seria fundamental para resolvê-los. A partir do “Fator R” seria possível superar tanto o capitalismo quanto o socialismo. Foram vários os sucessos de Schluter, incluindo entre eles a inédita derrota de Margaret Thatcher e iniciativas de paz na África do Sul, em Ruanda (depois do genocídio) e no Sudão. A Relationships Foundation se dedica a desenvolver e promover a consciência relacional em vários campos da sociedade moderna.

A discussão é muito mais do que econômica. Em nosso último artigo, nesta coluna, destacamos as evidências robustas de que vivemos uma epidemia global de solidão e isolamento social, atingindo principalmente as gerações mais jovens. Essa crise sem precedentes de sociabilidade produz doenças físicas e mentais, queda de capital social e, mais cedo ou mais tarde, pobreza em vários níveis. E afeta também o interesse pela religião enquanto prática social coletiva.

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Ora, isso tem relação direta com os ritmos da vida. Também argumentamos nessa coluna, em outro momento, que nossos valores mais importantes estão expressos em nossa forma de organizar o tempo, e que a modernidade secular impõe seus valores destruindo os tempos sagrados. Ninguém menos que o intelectual conservador Patrick Deneen, em Por que o Liberalismo Fracassou, sustentou que a obra do liberalismo é destruir a experiência temporal e a conexão entre passado, presente e futuro.

De fato, a desregulamentação do domingo contava, segundo Schluter, com o mau exemplo dos Estados Unidos, a grande nação liberal. O economista destacou seus efeitos deletérios para a família e o emprego, e a convergência da proteção do domingo com a religião. A destruição do domingo, embora de menor gravidade, se insere numa grande classe de mudanças legislativas que destroem a subestrutura “material”, por assim dizer, da coesão espiritual e religiosa da nação, como a facilitação do divórcio e a descriminalização do aborto.

O livre mercado não é mau per se, mas, se até mesmo alguns anjos se tornaram demônios, não devemos ser ingênuos quando uma criatura dos homens cresce a ponto de engolir a sua existência. A expansão do capitalismo para o mundo da afetividade e da moralidade já foi extensivamente explorada nessa coluna – até mesmo o aborto é um subproduto do moderno “capitalismo emocional”. O capitalismo deseja sequestrar o corpo dos homens, mas não pode fazê-lo sem capturar sua imaginação. E o melhor modo de capturar os dois ao mesmo tempo é sequestrar a temporalidade e os ritmos da vida. Não é difícil de entender: com o domingo ocupado, o trabalhador terá menos família e menos igreja.

Eu não quero dizer com isso, de forma alguma, que os cristãos pecam contra Deus apenas por trabalhar ou fazer compras nos domingos. Reconheço que há uma complexidade na vida urbana moderna. Não recomendo (e nem pratico) nessa área um legalismo religioso, com rigidez sem exceções. Meu ponto, acompanhando o argumento de Schluter e Townsend, é a obediência a um princípio geral de vida.

À parte algumas exceções definidas localmente, o comércio dominical deveria ser dificultado, e as prefeituras poderiam incentivar a população a se ocupar com a família, com atividades religiosas e até mesmo com a recreação

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Isso não pode, no entanto, ficar apenas no âmbito da escolha individual. Seguindo os princípios da economia comportamental moderna, sustento que “nudges” sociais seriam necessários. À parte algumas exceções definidas localmente, o comércio dominical deveria ser dificultado, e as prefeituras poderiam incentivar a população a se ocupar com a família, com atividades religiosas e até mesmo com a recreação. Tendo em mente a mencionada epidemia de isolamento social, medidas nessa direção poderiam, inclusive, ser aproveitadas como intervenções preventivas de saúde pública.

Seria essa uma posição sectária do ponto de vista religioso? De modo algum. O colega Marcio Antonio Campos publicou um artigo muito oportuno na última terça-feira, com o título “Make Sunday Holy Again”, mostrando que a posição católica oficial é a de preservar o domingo, e que isso atende a fundamentos teológicos e éticos cristãos, como ele escreveu: “os critérios que a doutrina católica estabelece são bastante simples: o trabalho aos domingos não pode, de forma alguma, impedir a pessoa de participar do culto divino, e não deve ser imposto desnecessariamente”. Vários documentos da igreja são elencados esclarecendo a posição católica, e a posição inequívoca do papa João Paulo II, na carta Dies Domini, de 1988:

“... é natural que os cristãos se esforcem para que, também nas circunstâncias específicas do nosso tempo, a legislação civil tenha em conta o seu dever de santificar o domingo. Em todo o caso, têm a obrigação de consciência de organizar o descanso dominical de forma que lhes seja possível participar na Eucaristia, abstendo-se dos trabalhos e negócios incompatíveis com a santificação do dia do Senhor, com a sua alegria própria e com o necessário repouso do espírito e do corpo.”

Os evangélicos não têm papas, mas têm seus grandes. Voltando ao livreto de Schluter e Townsend, vale mencionarmos o endosso recebido por ninguém menos que o falecido reverendo anglicano John Stott, antigo reitor da All Souls, em Londres, capelão da rainha Elizabeth II, líder da ala evangélica do anglicanismo e talvez o maior líder do evangelismo mundial no século 20:

“A legislação existente sobre comércio aos domingos precisa ser relaxada. Todos concordam a respeito. Mas isso não deve ser uma desculpa para abolir totalmente as restrições... [os autores do livreto] acreditam, como eu, que o ritmo de um-dia-para-cada-sete é parte do projeto divino para a vida humana. Cristãos deveriam desejar que isso seja consagrado na legislação, não apenas porque é o propósito de Deus, mas porque é bom para a sociedade, protegendo os indivíduos da exploração e as famílias da desintegração. É tempo de os cristãos despertarem, e para os cristãos inativos fazerem campanha por uma causa que é obviamente a vontade de Deus para a nossa sociedade.”

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Talvez seja descoberta surpreendente para muitos evangélicos conservadores e de direita hoje, mas a proteção do domingo contra a invasão do mercado e da tecnoburocracia é uma posição cristã ecumênica, coerente com a Doutrina Social da Igreja Católica e com o melhor pensamento ético evangélico. O comportamento de manada de muitos evangélicos hoje, que apoiam qualquer pauta da nova direita e rejeitam qualquer pauta da esquerda brasileira, precisa de firme reprimenda. Nesse assunto, por desgostosos que os evangélicos brasileiros estejam contra o governo lulopetista, quem está certo é realmente o ministro Luiz Marinho – e o digo mesmo que ele tenha motivações discutíveis e errôneas em sua decisão.

O domingo precisa ser protegido. Para as famílias e para o bem comum, ele deve ser mantido especial; para as igrejas e os cristãos, manter-se sagrado como sempre foi. E, se a direita propuser o contrário, se afastará da vontade de Deus.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]