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Neste sábado a minha filha mais velha se casa.

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Já trabalhei em muitos casamentos, seja como músico, em eras passadas, seja como ministro batista, celebrando as bodas de tanta gente, mas agora é tudo novo para mim: caso a minha filha! E, mesmo sendo tantos os assuntos prementes, como o das OABs e a liberdade religiosa, ou o do derretimento institucional que o Brasil de Bolsonaro testemunha, ou a da crise provocada pela ascensão da “classe criativa”, segundo o interessantíssimo artigo recente de David Brooks para o The Atlantic, por razões óbvias eu não pude pensar em outra coisa.

Comparei o casamento, noutro dia, a uma espécie de nó no espaço-tempo, uma “singularidade” na física do coração. Um vórtice temporal que se abre e, se colocamos muito coração nele, começa a girar e engolir tudo em volta, o mundo começa a girar ao redor daquele fim de semana fatídico que se torna um pequeno fim do mundo... mas também é um bereshit, uma Origem, o pequeno Big Bang de um pequeno mundinho de dois, que às vezes viram três, quatro, cinco... E que ninguém despreze esses mundinhos! Quem tem família sabe que ela pode se tornar um verdadeiro universo. Abraão que o diga.

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Para os pais parece mesmo um fim de tantas coisas; a gente fica para trás, num sentido, mas essa é a razão de estarmos aqui, passar o bastão da vida para os filhos e herdeiros. Só podemos continuar do lado de cá da eternidade, nesse mundo das coisas corruptíveis, assim: neles, que são nosso sangue e o sangue dos nossos pais. Nós, que testemunhamos o fim-começo, somos só um laço que transporta as coisas herdadas, as joias que fazem a vida fazer sentido, para aqueles que poderão carregá-las depois de nós. É por isso que um casamento parece essa coisa apocalíptica, esse trem escatológico, esse nó na história das nossas vidas.

O casamento também é um bereshit, uma Origem, o pequeno Big Bang de um pequeno mundinho de dois, que às vezes viram três, quatro, cinco... E que ninguém despreze esses mundinhos!

Alguns talvez estranhem tanto hype em cima do casamento, mas é assim que os cristãos o veem. Sentimos pelos que não dispõem mais dessas categorias, para quem o casamento é uma velharia sociológica ou uma assinatura reconhecida em cartório. Dirão que são convenções sociais datadas e ponto, e que seu universo-sem-casamento não é pior que o universo judaico-cristão. E o dirão ainda mais aqueles para quem a limonada amargou; pois quem espera muito e se frustra muito se ressente mais. Pois bem, não é essa a diferença entre uma xícara do melhor café e um copo de água barrenta? É tudo água, exceto por uns poucos gramas de café ou de terra vermelha. Às vezes toda a diferença está no que é... diferente.

Mil casamentos errados não servem de prova contra um que dá certo. Mas um casamento de amor é o juízo de dez mil casamentos frustrados.

Mas voltemos ao vórtice: à medida que a data se aproxima o tempo se comprime, a tensão se eleva; mais e mais irritação com os inúmeros contratempos e frustrações, mais e mais estupefação com o fato “impensável” de que aquele garoto realmente roubou o coração da sua filha, euforia crescente e risos nervosos antecipando as alegrias, as músicas, as festas, e o vestido da noiva. Os projetos se desorganizam, reuniões são canceladas, artigos quase deixam de ser escritos, e o orçamento sofre sucessivas revisões; me transformo num motorista particular, assistente de decoração, técnico de iluminação e marceneiro diletante. É um vórtice moral, espiritual, lúdico e financeiro, inegavelmente!

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Parece uma versão em miniatura do tempo messiânico, o tempo que se abrevia, que se contrai, como diz Paulo em 1 Coríntios 7,29. Na interpretação de Giorgio Agamben, em O Tempo que Resta, no tempo messiânico, que se contrai, as vocações ordinárias são suspensas em nome da vocação messiânica. O que os homens fazem ordinariamente – casar, comprar e vender, e usar das coisas do mundo – ainda deve ser feito, mas é feito sob a perspectiva da sua obsolescência diante do tempo que vem, o tempo do Reino de Deus. Perdem sua ultimidade, tornam-se acessórios. Como Pedro, André e Tiago, somos impelidos a largar o barco de pesca e seguir o messias, enquanto ele nos convoca sem parar para esperar. É claro que o próprio casamento é engolido pelo vórtice messiânico; mas, como eu disse, à parte dessa grande narrativa, a cerimônia parece operar como uma miniatura da coisa toda. E foi essa mesmo a minha sensação: de repente tudo ou quase tudo entra em suspensão, e fica secundário diante do grande fato escatológico que se aproxima, a cerimônia das alianças e o pacto entre os dois jovens.

Aprendemos com Einstein que a gravidade distorce o espaço-tempo ao redor, de modo que a própria luz é desviada de seu curso. E é “precisamente” assim que modifica, por analogia, a nossa percepção de tempo e de espaço: sob a força gravitacional dos bens humanos. As coisas que têm muito valor pesam no espaço-tempo do espírito, esticam e espremem a nossa atenção, criando topologias temporais, nas quais o tempo anda mais rápido ou mais devagar ao redor de assuntos de grande importância. E o que é muito importante toma muito interesse, muita energia, muito dinheiro, muitos olhos, muito tempo.

É o que faz a competição pela medalha olímpica, para muitos torcedores e uns poucos atletas eleitos que se classificam para as finais; é o que faz um casamento na agenda de multidões de pessoas comuns: reorganiza as coisas em direção a seu horizonte de eventos, a partir do qual só há o outro lado e não se volta mais de lá (ao menos, não como se entrou). E de onde estamos, até aquele ponto, essas coisas ficam temporizadas. Se me permitem outra analogia, como a limalha de ferro se distribui naquele belo padrão, segundo as linhas de campo magnético entre dois polos. Aquele afundamento gravitacional na agenda induz uma temporização dos eventos e das tarefas, e a mente viaja por essas linhas, sentido a pressão, a aproximação, o “cheiro de chuva” das emoções, das luzes e dos sorrisos.

Mil casamentos errados não servem de prova contra um que dá certo. Mas um casamento de amor é o juízo de dez mil casamentos frustrados

O tempo das coisas humanas é assim, um tempo temporizado pelos nossos bens e especialmente pelos nossos hiperbens, aqueles valores máximos, bens de natureza última, que escalonam e classificam todos os nossos bens. Podem ser coisas triviais, como o dinheiro – o que achata e empobrece toda a existência –, ou coisas superiores, como a justiça, a felicidade, ou o amor, ou Deus. Deus é o verdadeiro hiperbem, do qual os outros são pistas e sinais indicadores. É por isso que a encarnação do verbo define o centro do tempo, como dizia Oscar Cullmann. A vitória de Cristo na ressurreição e a sua vinda reestruturam toda a topologia moral e, portanto, temporal dos cristãos, temporizam diferentemente suas coisas e criam suas próprias agendas.

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E isso nos traz de volta ao casamento cristão. Pois ele não é nada menos que o maior sinal divino no mundo criado; os católicos romanos o chamam de “sacramento”. Mas, de fato, a Bíblia começa e termina com um casamento; em Gênesis, Adão canta: “osso dos meus ossos, e carne da minha carne!” E em Apocalipse o apóstolo proclama:

Então vi um novo céu e uma nova terra. Pois o primeiro céu e a primeira terra já se foram, e o mar já não existe.
Vi a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus, enfeitada como uma noiva preparada para seu noivo.
E ouvi uma forte voz, que vinha do trono e dizia: O tabernáculo de Deus está entre os homens, pois habitará com eles. Eles serão o seu povo, e Deus mesmo estará com eles.
“Ele lhes enxugará dos olhos toda lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem lamento, nem dor, porque as primeiras coisas já passaram.”
O que estava assentado sobre o trono disse: Eu faço novas todas as coisas! E acrescentou: Escreve, pois estas palavras são fiéis e verdadeiras.
(Apocalipse 21,1-5)

Por múltiplos sinais tipológicos, analogias e declarações explícitas sabemos disso: que a razão última pela qual Deus fez o mundo foi o casamento de seu filho com a sua “noiva”, o verdadeiro povo de Deus, a Civitas Dei. Na filosofia cristã da história essa é a trama profunda, o invisível fio de amarração, o vórtice no qual a própria história, inteira, ainda que girando de um lado para o outro, avança. O grande casamento do céu e da terra, antecipado nos mitos e celebrado em cartório na Páscoa de Cristo, está em fase de preparação.

Para os cristãos, esse fato magnetizou o campo, modificou a topologia moral, e induz temporizações diferentes. Criou o ano cristão, os domingos, os ritmos da vida de fé, os ritos e festas, mas também as agendas morais da vida e do nascimento, do casamento e do sexo, da morte e da obediência, que tanto incomodam pessoas secularizadas, cuja topografia temporal é feita de aniversários, formaturas, olimpíadas e eleições. Pois a modernidade secular expurgou o tempo de sentidos transcendentes; tornou-o plano e não hierárquico, mas também horizontal e monótono. Mas não que os cristãos não compartilhem dessas datas ordinárias do mercado, da política e do esporte; é que, diante da cordilheira do Evangelho, elas não são mais que pequenas colinas e outeiros.

O casamento é a nossa grande chance: a grande chance de imitar a Cristo, amando uma esposa ou um marido com tudo o que temos para dar

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E por isso o casamento importa para nós, cristãos. O casamento é a nossa grande chance: a grande chance de imitar a Cristo, amando uma esposa ou um marido com tudo o que temos para dar; e no mínimo a chance de compreender o quanto estamos distantes de Jesus Cristo e dependentes de sua graça. O casamento é o grande sinal, a cópula do céu e da terra, o sacramento da criação e o símbolo do Novo Mundo que Cristo revelou – sim, o casamento, essa instituição trivial e cheia de ambiguidades, é uma janela para o pior que há no ser humano, mas ainda assim uma porta para o melhor de Deus para ele. Nada nos põe tão próximos de entender o sentido da vida do que a alegria e a tristeza, a riqueza e a pobreza, a saúde e a doença, o orgasmo apaixonado e a amizade curtida e serena que, como um bom vinho envelhecido, só o casamento pode dar.

A história de Cristo me enche de alegria e de expectativa. Quero ver a nova Jerusalém descendo do céu. Como João Batista, que se autodenominava “o amigo do noivo”, quero sorrir e piscar para Ele no dia da festa escatológica. Mas, enquanto essa festa não chega, vou ensaiar naquele casamento de sábado. Ali, na singularidade dos nossos corações, vou piscar pra minha filha e para o seu noivo.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]