“... a nossa adesão à verdade pode ser vista como implicando a nossa adesão a uma sociedade que respeita a verdade, e em que confiamos para a respeitar. O amor da verdade, e dos valores intelectuais em geral, reaparecem então como o amor ao tipo de sociedade que promove esses valores, e a submissão a padrões intelectuais será vista como implicando a participação numa sociedade que aceita a obrigação cultural de servir esses padrões.” – Michael Polanyi, “Conhecimento Pessoal” (1957)
Em sua discussão sobre a “convivialidade”, Polanyi destaca, entre outras coisas, a dimensão comunitária da jornada do conhecimento, a “partilha tácita do conhecer” e a comunicação articulada e significativa, por natureza coletiva. A verdade, como destacamos na citação, não é um fato inumano, “objetivo” e independente da mente, mas um bem humano compartilhado, um valor que compõe a cultura e que a sociedade cultiva.
Ou... que deveria fazê-lo. Afinal, estamos na era em que dogmáticos conservadores promovem a cultura da “pós-verdade” e que relativistas posmodernistas reclamam disso pedindo fact checking.
A modernidade ocidental parece viver em um estado de crise permanente, e segundo não poucos intelectuais isso se deve a uma contradição interna na concepção de liberdade. Essa era a posição do próprio Michael Polanyi; construímos uma cultura fabulosamente fértil e criativa, mas ao mesmo tempo autofágica, paradoxal. Nas palavras de Patrick Deenen, em Why Liberalism Failed, uma estranha espécie de anticultura.
Sabedoria e cultura
Mas antes de considerarmos essa noção de Deenen, será necessário recuperar a discussão sobre sabedoria que trouxemos nos últimos três artigos desta coluna.
A investigação científica e filosófica sobre a Sabedoria – essa estranha e sofisticada capacidade de fazer a vida funcionar – confirma o entendimento de que ela não consiste, nem meramente em um bloco objetivado e teórico de conhecimentos morais, uma coisa livresca, nem como mera habilidade mental subjetiva, vazia de conteúdos e ideias. Quando o fenômeno da sabedoria acontece, é sempre algo simultaneamente objetivo e subjetivo, coletivo e individual, na consciência e na cultura.
Trata-se, certamente, de um conjunto de habilidades pessoais, de um expertise pragmático, penetrante o suficiente para sincronizar o julgamento e a realidade. Mas sempre é, ao mesmo tempo e necessariamente, uma aquisição comunitária e cultural. E, nesse sentido, a sabedoria é contada entre os bens humanos que permitem os grandes sistemas articulados que Polanyi tinha em mente: a ciência, a arte, a religião, e a educação.
Demos destaque a esse ponto no artigo anterior dessa coluna, quando apresentamos alguns dos resultados da pesquisa do Dr. Paul Baltes, a respeito das diferenças entre a “cognição mecânica” e a “cognição pragmática”, o “hardware” e o “software” da mente. Esse insight específico é tão fundamental que vamos reapresentá-lo de modo breve.
Como explicamos, a cognição mecânica seria a inteligência a partir de sua base psicobiológica, envolvendo memória, percepção, categorização, cálculo, etc. Trata-se da capacidade computacional com bases naturais, que atinge seu máximo na juventude. Já a cognição pragmática seria a compreensão de mundo, as heurísticas adquiridas para julgamentos complexos, equacionando valores diferentes, a capacidade de fazer previsões com base na experiência, etc. Metaforicamente, a primeira seria o “hardware” e a segunda o “software”.
Baltes confirmou em suas pesquisas que os jovens superam os idosos na cognição mecânica (hardware) mas são superados pelos idosos na cognição pragmática (software). O ponto de Baltes é que a sabedoria seria exatamente a cognição pragmática – o expertise prático, complexo e sofisticado, obtido por meio da experiência acumulada.
Ora, as categorias mais amplas e complexas para o julgamento sábio, que vão muito além da capacidade computacional, não são meras invenções individuais. Elas envolvem intenso intercâmbio social, através do qual a experiência de realidade da pessoa é aprofundada e expandida. A linguagem se amplia, e o acesso a experiências diferentes se amplia também.
Poderíamos fazer uma analogia com sistemas operacionais que permitem o desenvolvimento de diversos aplicativos, como o sistema Android, usado em muitos celulares. Esse processo de criação, testagem e disponibilização de aplicativos funcionais, compondo um “acervo” de ferramentas que um celular (hardware) é um imenso trabalho coletivo.
O “software” da sabedoria, por assim dizer, é construído coletivamente. E a cultura seria, em nossa analogia, o “sistema operacional”, que recebe os “aplicativos” e os media para a mente individual.
Voltemos agora a Patrick Deenen.
A anticultura liberal
Uma das denúncias mais agudas de Deenen ao liberalismo político objetiva o seu ethos anticultural. Na obsessão por expandir a liberdade individual removendo compromissos, obrigações interpessoais e limitações morais, ampliando ao mesmo tempo o poder do Estado e do mercado de promover, terapeuticamente, o bem-estar de cada indivíduo, o liberalismo deseja formar pessoas autônomas, emancipadas, senhoras de si mesmas. Na prática, parece formar pessoas sem virtude; gente que se aproxima, por assim dizer, do “estado de natureza” hobbesiano. A crise moderna da democracia liberal seria um dos sinais disso.
Nunca é demais enfatizar que o liberalismo, em sua versão progressista, tornou-se hoje uma espécie de consenso, se não teórico, ao menos pragmático, principalmente pela ampla influência do movimento internacional de direitos humanos. Mesmo a esquerda brasileira não consegue se comunicar hoje sem ele; é a grande ideologia moral moderna.
Pois bem; o espírito anticultural do liberalismo estaria assentado sobre três pilares: a busca da conquista e da transcendência da natureza, a distorção da experiência temporal como se fosse um presente sem passado, e a destruição do significado do lugar de vida. Esses três pilares efetivam uma espécie de desmaterialização total da cultura. Vale a pena sintetizá-los aqui:
“Uma cultura se desenvolve acima de tudo com consciência dos limites, dádivas e demandas da natureza. Essa consciência não é teorizada, mas uma realidade vivida que muitas vezes não pode ser descrita até que deixe de existir. O liberalismo, por contraste, tem procurado consistentemente desassociar as formas culturais da natureza... O objetivo do domínio da natureza com o fim de libertar a humanidade de seus limites – um projeto inaugurado no pensamento de Francis Bacon – foi simultaneamente um assalto às normas culturais e práticas desenvolvidas lado a lado com a natureza.” – Patrick Deenen
O primeiro pilar consiste na crença, herdeira de Hobbes, que apenas o Estado pode tirar o homem do estado de natureza, que seria um estado de arbítrio, violência e vício. Quanto à cultura, com seus valores, práticas sociais e instituições, essa seria vista involuntariamente como um obstáculo à liberdade humana. O caso é que ela reúne os homens em formas de vida que violam seus direitos naturais e que não gozam da legitimidade do contrato social.
Seria necessário, então, desmontar o edifício da ordem social e reconstruí-lo a partir de uma planta “científica”, de modo a otimizar a liberdade e a ordem. Em analogia com o projeto intelectual de Descartes, more geometrico.
Transformando a arqueologia Hobbesiana da sociedade em uma teleologia, ou um destino, o liberalismo sente-se no dever de desfazer a cultura para “libertar” o indivíduo de prisões arbitrárias, de modo que ele a nada se sujeite além dos termos do contrato social e das “justas” imposições do estado. A cultura, no ínterim entre o “estado de natureza” e o “Leviatã”, estaria condenada à evisceração. Afinal, ela não é nem indivíduo nem contrato. Para todos os fins práticos, é tratada como um excesso.
Mas vamos ao segundo pilar:
“Mais do que um sistema de governo ou uma ordem legal e política, o liberalismo procura redefinir a percepção humana de tempo. É um esforço para transformar a experiência de tempo, em particular o relacionamento de passado, presente e futuro.”
Segundo Deenen, o liberalismo, assim como o progressismo, padece de um entranhado ódio ao passado, e promove o presente como uma contínua ruptura com um passado que precisa ser abandonado e esquecido. O tempo, assim fraturado, gera individualismo – segundo argumento antecipado por Alexis de Tocqueville. O que existe é o indivíduo, agora.
O segundo pilar da anticultura liberal seria, então, a recusa da temporalidade integral. A cultura, enquanto sistema simbólico e prático coletivo e herdado, seria “a prática da temporalidade plena”, unindo passado, presente e futuro.
Se o primeiro pilar nega a natureza, e o segundo o tempo, o terceiro é a negação do espaço:
“O Liberalismo valoriza a delocalidade. Seu “estado de natureza” estabelece uma visão de lugar nenhum: indivíduos abstratos em lugares igualmente abstratos... O lugar aonde alguém nasce e é criado é tão arbitrário quanto os pais, a religião e os costumes que têm. Cada um deveria considerar a si mesmo, primariamente, como um livre-escolhedor, tanto de seu lugar quanto de todos os relacionamentos, instituições, e crenças.”
Não ter lugar, em suma, é não estar preso a nada ou quase nada, e não pertencer. “Liberdade” completa; mas nesse caso, sem comunidade, sem restrições e formas para a vida social: sem cultura compartilhada. Nesse mindset, não há como falar-se em “bem comum”, com exceção do aparato estatal para garantir o mínimo de civilidade e das regras do mercado, para garantir a felicidade. A delocalidade é o terceiro pilar da anticultura liberal.
O que se ergue, nessas condições é, evidentemente, o Leviatã. A desmaterialização da cultura é pressuposto e condição de possibilidade para que o Estado e o mercado assumam as funções de mediadores e moderadores universais das relações humanas. Nesse mundo, não há crenças, ritos, e instituições com valor e solidez independentes das imposições contratuais e pragmáticas do Leviatã.
Não é que não haja, de certo modo, uma “cultura” liberal; mas que ela consiste de uma espécie de vácuo, no qual não há natureza a respeitar, mas apenas liberdades a expandir, não há tradição nem conexão transgeracional, nem memória, e no qual não há lugares definidos, formas consagradas, mas tudo é mutável e movível segundo as revoluções do capitalismo de hiperconsumo e da cultura pop. E a educação liberal garante esse resultado, ensinando aos jovens o cultivo de um pathos implacavelmente anticultural.
O próprio multiculturalismo, que poderia ser um desafio ao pluralismo e ao aprendizado das diferenças, converte-se em mera justificativa para o ceticismo sobre crenças e modos de vida, acelerando a atomização social e dissolvendo todos os pertencimentos, hábitos e experiências coletivas. A única experiência coletiva passa a ser o consumo e o voto.
Aqueles que desejam honestamente compreender a crítica Cristã à cultura moderna secular, precisam entender esse ponto: a asfixia da família, da religião, dos deveres comunitários, de uma educação para virtude e valores, e dos pertencimentos ordinários não é um fenômeno trivial e sem importância, mas uma ameaça civilizacional. A crise não é primariamente do cristianismo, mas da sustentabilidade de uma civilização cujo segredo íntimo é desejar sua autodestruição.
O indivíduo “libertado” por essa cultura é, efetivamente, um ente empobrecido, que só pode ser protegido de outros “lobos do homem”, como ele mesmo, por um estado forte e por constantes anestésicos do mercado.
Sabedoria e anticultura
As críticas devastadoras lançadas por Deenen ajudam a compreender o problema que levantamos aqui, a respeito da cultura WEIRD, típica dos contextos urbanos e liberais modernos: uma introversão narcisista e atomizadora, que destrói o sentido de bem comum, os capitais sociais e a cooperação entre os indivíduos. Mark Lilla atribui exatamente à educação liberal o agravamento recente dessa tendência atomizadora, com seu clímax na psicopolítica das identidades, promovida hoje por liberais e progressistas como estratégia política central.
Os valores dessa cultura estão estampados não apenas em todo o nosso sistema educacional, mas em nossa mídia “cultural”, que poderia ser, nesse sentido, renomeada como uma mídia “anticultural”. A composição de “discurso”, mentalidade e estética comunicativa de fenômenos como o do influencer Felipe Neto ilustram bem essa anticultura liberal.
Como vimos em outro artigo, os resultados da pesquisa de Igor Grossmann sugerem que culturas mais liberais seriam responsáveis por um atraso na aquisição de habilidades “metacognitivas” pelos seus jovens – ou seja, de sabedoria – em comparação com culturas mais comunitárias, ou “sociocêntricas”. Se isso for de fato a explicação contextual para seus resultados, a carência de sabedoria pessoal ou a demora em adquiri-la seria a contrapartida, ou o outro lado da moeda de uma cultura na qual a habitação comum em um mesmo mundo simbólico não faz tanta diferença na dieta espiritual dos jovens.
De algum modo, então, o liberalismo não sabe ensinar, e socializa as novas gerações ensinando-as a se autoafirmarem anticulturalmente – ou seja, ensinando-as a desaprender sempre, para progredir rápido. Como pode uma civilização ensinar as pessoas a desaprender, como método? Como se lê nas Escrituras hebraicas, a sabedoria é exatamente aquilo que não é possível ganhar sem ouvir.
1Por acaso a sabedoria não está clamando? Por acaso o entendimento não está elevando a sua voz?
2Ela se coloca nos lugares mais altos, à beira do caminho, nos cruzamentos das estradas,
3perto das portas, à entrada da cidade e à entrada das portas está clamando:
4Homens, clamo a vós, e aos filhos dos homens dirige-se a minha voz.
5"Ó simples, aprendei a prudência; ó loucos, entendei a sabedoria."
6"Ouvi, pois anuncio coisas excelentes; meus lábios se abrem para a equidade."
Provérbios 8:1-6
O oitavo capítulo do livro bíblico dos Provérbios representa a Sabedoria de forma personificada, como uma voz que clama. Embora sendo a própria arquiteta do universo, para tanto convocada pela divindade, desce a convidar os filhos dos homens às suas lições. É uma voz; quem não sabe ouvir, não poderá recebê-la.
Isso vale para a sabedoria como um todo; desse as suas raízes divinas e espirituais até suas manifestações mais terrenas e comuns, como a gestão de relacionamentos famíliares, a comunicação política, a vida científica e o cultivo da amizade. Quem não sabe ouvir, não se tornará sábio. Mas ouvir é exatamente o que o liberalismo não consegue ensinar.
Poderíamos comparar a anticultura liberal a um software com uma falha fatal. Ele roda até certo ponto, e realiza operações muito interessantes, mas eventualmente produzirá uma “tela azul” e uma mensagem de erro. O sistema deve necessariamente entrar em colapso, se seus recursos mais potentes trabalham de forma contraditória, destruindo suas condições de operação.
Assim é a anticultura liberal: incapaz de estabelecer um sistema de significados estável o suficiente para tornar-se uma sabedoria compartilhada, e incapaz de ensinar seus membros a aderir a qualquer coisa que não seja a emancipação individual e o anticulturalismo. Embora não impossível, é muito mais difícil para um jovem crescer em sabedoria preso em um sistema antissabedoria.
Se quisermos ver uma mudança significativa nesse quadro educacional, será preciso uma mudança paradigmática da sociedade contemporânea, rumo a uma cultura pós-liberal. Parafraseando Michael Polanyi, uma cultura que respeite a sabedoria, e na qual confiamos para juntos a respeitar.
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