Segundo anunciado em meu último artigo, eu deveria publicar hoje a continuação de uma série sobre liberdade religiosa e direito ao proselitismo. Mas houve uma pandemia no meio do caminho. Uma pandemia e uma série de temerários atos políticos, que radicalmente alteraram meus planos.
Na última terça-feira solicitei à querida ministra Damares Alves a exoneração do cargo de diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos. Os motivos que me levaram a aceitar esse cargo, e finalmente a me demitir, e a minha crítica ao governo que deixei para trás, explico em meu blog pessoal.
Uma espécie de luto se iniciou imediatamente. Luto pelo pequeno universo que se abriu com minha ida a Brasília, feito de reuniões, notas técnicas, resoluções sobre direitos humanos, negociações políticas e estratégias de política pública, mas, acima de tudo, de colegas, de amizades e de alguns sonhos coletivos. Luto que se aguçou enquanto eu aguardava o voo da ponte Brasília-Confins, entre memórias alegres, e uma estranha saudade da trincheira.
Por motivos que apenas Ele conhece, aprouve ao Criador abrir agora esse abismo meôntico e nos fazer tremer
Mas uma série de provas se impõe agora, catalisada pelo processo histórico. Esaas provas me ocorreram agudamente, enquanto aguardava o voo 3842, como um vento frio, e ao mesmo tempo como um chamamento. Mas não são coisas insondáveis; estão ao acesso e disponíveis a qualquer consciência alerta. Chamei-as, num post anterior em redes sociais, de “três gigantes”.
A Peste Quaresmal
A primeira prova é a Peste que se avizinha, abalando as seguranças da nossa civilização e criando uma inesperada vertigem temporal, uma sensação escatológica, como se o fim estivesse próximo. Certamente o fim está sempre próximo para todos, e para alguns estará bem mais próximo na forma de uma doença desgraçada. Mas esse abismo não está sempre presente à consciência. Por motivos que apenas Ele conhece, aprouve ao Criador abrir agora esse abismo meôntico e nos fazer tremer.
Na verdade, conhecemos ao menos dois motivos para os gestos insondáveis da Providência – o que não nos garante explanação monossêmica: a ira e a misericórdia. Se os homens se lembrarem de que têm almas, seja de um modo, seja de outro, a mão de Deus se moveu. Como disse um sábio diretor de cinema: não é verdade que quem vê Deus lhe dar as costas também O viu, à semelhança de quem viu Sua face?
Diante dessa prova os “deuses” se adiantaram. Invoca-se o Estado, a Ciência e a Liberdade. Charges já zombam dos religiosos, profetizando a cura que vem, e que a ciência nos dará. Espero que venha mesmo, e talvez já tenha sido encontrada em Stanford. Mas sabemos que são fanfarronices, essas falas. A cura adiará a morte de muitos, mas eles finalmente morrerão, na próxima esquina da história. E não trará de volta os que vamos perder. A ciência adiará a morte da raça humana, até o próximo asteroide, ou até o Sol morrer.
Não quero menosprezar a ciência; mas sua analgesia tem limites. Não pode ser usada para nos fazer esquecer de que temos almas. De que serve a ciência se, com ela, não precisarmos mais ser humanos?
Nenhuma peste deve ser recebida sem luta; mas tampouco deve a peste ser desperdiçada. Ela pode ser a sua última chance. Ou a nossa última chance. Um momento para encontrar a alma, para orar a Deus, para abrir o livro sagrado; e para encontrar o Criador no rosto do outro. Para viver o momento presente como dádiva, e reler com perspectiva o que importa e o que não importa tanto nessa vida. Pois a verdadeira peste não é a Covid-19, mas o esquecimento de que somos criaturas.
Mas pergunto a mim e a meus irmãos de fé: seguiremos cristãos depois dessa peste? Penso que só com Esperança tal será possível. Não meramente a esperança enquanto cálculo otimista de probabilidades, mas como visão meta-histórica. A Esperança no Deus que ressuscita os mortos e chama à existência as coisas que não existem.
Não é irônico que a quarentena se dê bem durante a Quaresma? Um longo período em pano de saco e cinza, cosmicamente imposto a todos, no qual nos preparamos para a cruz e o túmulo? Mas às trevas sucede o domingo da Ressurreição. Vamos celebrá-lo onde estivermos!
Seguiremos cristãos depois dessa peste? Penso que só com Esperança tal será possível
E se a Esperança nos carregar, e nos mantivermos cristãos, talvez saiamos dessa mais humildes e cientes de que somos pó. Poderia ser que isso nos aproximasse? Poderia ser que, após tais sofrimentos, aprendamos a obediência e voltemos a cooperar? Talvez eu esteja pedindo demais, e depois da Peste tenhamos tribunais e acusações, mas é possível que haja fraternidade e política novamente. Política como oikonomia, e não como guerra.
O pathos neoconservador
É possível que a Peste nos dê distanciamento e visão em perspectiva de nós mesmos. Talvez até mesmo o governo ganhe autoconsciência. Se isso acontecer, reconheceremos com maior tranquilidade que há um pathos doente, um sentimento de mundo enraivecido e cheio de ressentimento, ocupando o Palácio do Planalto. Não se trata de um indivíduo, exatamente, mas de um espírito.
Esse sentimento tem suas razões de ser; emergiu de encarniçadas lutas morais, contra forças revolucionárias de esquerda e contra outro sentimento de mundo, anômico, demoníaco, cheio de neurose contra a finitude, e de orgulho por seu futuro utópico. O espírito prometeico da modernidade.
A prudência e o amor pelas coisas boas que há no mundo prevalecerão sobre a revolução. Seja ela de esquerda ou de direita
Mas é, ainda assim, doente. Aos amigos que acusam o atual governo de fascismo, sigo insistindo que não há nem houve até agora política pública fascista. Mas há, sim, um pathos fascista que está por trás da amargura contra o jornalismo e a universidade, e contra qualquer diferença de pensamento.
Se a peste não suavizar a alma dos governantes, os magistrados inferiores deverão agir para exorcizá-lo, através da prática do diálogo, do respeito às instituições, do louvor aos bons exemplos, da pacificação diante dos radicalismos. Talvez isso nos torne menos “conservadores” do que alguns prefeririam, mas que importa? A prudência e o amor pelas coisas boas que há no mundo prevalecerão sobre a revolução. Seja ela de esquerda ou de direita.
Enquanto estamos quarentenados, importa uma coisa: exercitar-se no amor às coisas amáveis. E talvez saibamos o que fazer depois da peste.
O Minotauro sentimental
E bem à frente, o minotauro. Um movimento que tem corpo e homem e mente de touro; que nada mais é do que a moralidade animalizada e amoral que se constituiu através da cultura terapêutica, como bem a descreveu Philip Rieff em 1966, e que se tornou a regra do mundo em 1968: “é proibido proibir”.
Essa moralidade amoral a tudo justifica com base no bem-estar e no sentimento, constituindo-se num emotivismo moral. Esse emotivismo, absorvido como prática social e modo liberal de educação, gerou essa grotesca inversão moral a que chamamos “Minotauro sentimental”, ou Homo sentimentalis.
Que deveria e poderia ser um estilo de imaginação moral e comportamento social emocionalmente inteligente, e afetivamente competente, mas que não existe em lugar nenhum. Tudo o que vemos é o aumento da depressão, da ansiedade e do sofrimento mental, e uma acelerada psicologização de toda a atividade política, que abandona o bem comum e cai sob a força desse “buraco negro” chamado reconhecimento identitário.
A esquerda precisa suprimir a liberdade religiosa e a presença cristã pública para avançar sua agenda
O modelo moral da esquerda identitária tem um inimigo principal: a liberdade religiosa. Pois se for mesmo necessário respeitar a moralidade cristã, ainda que não como regra judicial, mas como modo de vida aceitável numa sociedade pluralista, será preciso ensinar a todos a convivência com uma ética do sacrifício. Uma ética tão importante, e tão incômoda, que recentemente despertou preocupações filosóficas em um marxiano sem mácula como Terry Eagleton.
O “fascismo de esquerda” (na expressão de Risério) é inimigo da liberdade religiosa. Lançando mão do dialeto ideologizado de direitos humanos hoje dominante no sistema internacional, essa esquerda precisa suprimir a liberdade religiosa e a presença cristã pública para avançar sua agenda. Ou, se possível, desviar o cristianismo das veredas da ortodoxia, domando-o. Seremos capazes de derrotar essa falsa narrativa e manter levantada a bandeira dos direitos humanos?
Penso que isso é possível. Mas precisaremos redescobrir a Virtude. Que seja não palavra contra palavra, ou homem contra homem, mas ética contra ética. Que seja uma batalha do bem. A Virtude significa a educação moral centrada na relação e na resposta à realidade, e não na autoexpressão e no bem-estar acima de tudo.
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Podemos colocar todo o foco nos três gigantes, mas, de certo modo, quis usá-los como transfundo, como enquadramento para o que interessa: a Esperança, a Fraternidade e a Virtude. Essas “armas” são, na verdade, arados com os quais podemos cultivar coisas. Outras coisas, coisas novas e diferentes. Vejo aí o futuro mais imediato de uma presença fiel e cristã na política: erguer cidades nas quais os gigantes não possam penetrar.
Deixei o governo, mas não deixei o trabalho e a missão. Como deixei claro em meu blog, há muitas coisas duras que precisam ser ditas, e que precisam ser ditas nessa quarentena quaresmal. Pois esse é o momento de pano de saco e de cinza. Espero que os bons homens e mulheres que ficaram deem o seu melhor. Espero que o governo melhore, ou que o Senhor o remova. E que não faltem servos dEle dentro, fora, acima e abaixo do governo. Afinal, não há um centímetro quadrado em todos os domínios da vida humana sobre os quais o Crucificado não estenda seu reino suave, mas invencível.
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