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Nessa sexta feira Deltan Dallagnol, ex-procurador do Ministério Público Federal, se filia oficialmente ao Podemos, sobre a base de um compromisso mínimo com três causas: compromisso com a democracia, um processo rigoroso e formal de preparação para a vida política, e um compromisso coletivo com o combate à corrupção.
Eu conversei com Deltan algumas vezes a respeito, inclusive há poucos dias, quando ele tomou a decisão definitiva de filiação ao partido, e dessas conversas nada me ocorreu para além das razões que são, na verdade, públicas, para essa decisão: de algum modo a reação à Lava Jato foi forte o suficiente para inviabilizar sua atuação no MP, ao menos na escala em que ele gostaria de atuar. E, com o grau de sentido vocacional que o homem carrega, deitar-se com a barriga pra cima seria impossível.
Lembro-me de que essa consciência de um forte obstáculo sistêmico já era claramente exprimida pelo procurador quando conversamos pela primeira vez em uma visita sua a Belo Horizonte em julho de 2015 – ele estava em plena campanha, à época, pelas “Dez Medidas de Combate à Corrupção”. Desde então acompanhei atentamente os avanços e reveses da Lava Jato e de outras iniciativas nessa direção. Embora isso pouco importe, confesso-me um “lavajatista” moderado, admitindo algumas ambiguidades importantes no processo todo. Diante de várias delas fui, por pura ignorância das tecnicalidades jurídicas, obrigado a manter-me agnóstico, de modo que não faço questão, também, de defender a Lava Jato incondicionalmente, como se fosse o nome da minha própria mãe. Ou melhor: meu apoio à Lava Jato sempre foi muito mais a expressão pontual de uma preocupação mais ampla, com o problema da corrupção sistêmica.
Há de se respeitar a decisão do Supremo sobre os processos da Lava Jato, mas não necessariamente acreditar ingenuamente nela. E, de certo modo, ao se dobrar à pressão política, a corte declarou sua própria suspeição
Não obstante, parece-me claro que os reveses da Lava Jato, justificados com base em falhas do processo, sejam elas mais ou menos materiais, apresentam uma intensidade e extensão que denunciam, mais do que a preservação do devido processo legal, a vontade de frear o combate à corrupção. E essa vontade vinha dos três poderes. A saída de Sergio Moro do governo me parecia uma questão de tempo, com as crescentes pressões contra a Lava Jato no Legislativo e no próprio Judiciário, e com a Presidência convenientemente abandonando a agenda no meio da estrada.
Não posso afirmar com toda a segurança que Moro não houvesse contemplado, ainda na qualidade de juiz da Lava Jato, um processo de ascensão política, e que isso não tenha influenciado os julgamentos da Lava Jato; talvez sim, talvez não. Mas os processos atravessaram todos os rigores jurídicos e foram filtrados em diversas instâncias, antes de serem finalmente anulados a posteriori pelo STF, ao menos em parte por razões obviamente políticas. Mesmo com os processos anulados no âmbito jurídico, as provas não foram desfeitas no plano cognitivo, no mundo da realidade objetiva. Há de se respeitar a decisão do Supremo, mas não necessariamente acreditar ingenuamente nela. E, de certo modo, ao se dobrar à pressão política, a corte declarou sua própria suspeição.
Pessoalmente, enfim, ainda não tenho grandes coisas a dizer sobre Sergio Moro; a coisa, no entanto, muda de figura no caso de Deltan, que nunca sinalizou querer usar sua posição no MP como mera escada, e que manifestava pouco interesse político pelas ideias da direita. O homem já estava muito bem instalado e muito bem pago, e poderia ter considerado feita a sua parte pelo país e ir cuidar da sua própria vida – ainda que o risco de retaliação do CNMP não pudesse ser subestimado. Todavia, mesmo nesse caso, fossem outros os seus interesses primários, um martírio impetrado pelo sistema de justiça viria até mesmo a calhar.
E aqui vai a minha acusação: considero uma grande hipocrisia, uma hipocrisia realmente dos diabos, usar retroativamente o fato de que Deltan Dallagnol decidiu entrar para a política, como se esse sempre tivesse sido o seu interesse, e como se toda a sua atividade anterior pudesse ser desqualificada por essa razão.
Contemple-se o absurdo da situação inteira: depois de fazer o máximo possível, em obras e palavras, para frear a Lava Jato, desacreditar o combate à corrupção e destruir a reputação dos juristas, os mesmos oponentes fazem cara de surpresa (ou de malícia, tanto faz nesse caso) pela decisão de usar as vias políticas para desentupir os encanamentos nacionais. Ora, o que faria qualquer um em sã consciência, com responsabilidade cidadã e com capital político nas mãos? Sentar-se e chorar? Ajoelhar-se diante do STF e dos advogados de Lula e beijar-lhes os pés?
Considero uma grande hipocrisia, uma hipocrisia realmente dos diabos, usar retroativamente o fato de que Deltan Dallagnol decidiu entrar para a política, como se esse sempre tivesse sido o seu interesse
Concedo que alguns que compraram tal discurso cínico não sejam maldosos, mas apenas uns pobres desorientados; quanto ao centro de irradiação desses detritos, contudo, nos antros da mente esquerdista, esse não merece nenhuma condescendência: é certamente uma combinação de ódio político com a mais pura sem-vergonhice.
A fortíssima reação contra a agenda anticorrupção é razão mais do que suficiente para justificar as decisões de Deltan, e a desqualificação insistente por críticos esquerdistas e, agora, até por bolsonaristas fornece cabal demonstração de que a agenda anticorrupção carece, na verdade, de boa representação política.
Evidentemente o problema todo tem outra face, que não diz respeito a antipatias ou simpatias para com a pessoa de Deltan Dallangnol: o baixíssimo grau de compreensão do problema da corrupção no Brasil. Em geral, quando menciono esse assunto, as faces assumem tons graves e preocupados, e de um modo ou de outro se fazem ressalvas, admissões e até um mea culpa político. Mas as conversas mais aprofundadas me dizem que, no imaginário de muitos eleitores da esquerda, a insistência na pauta anticorrupção sinaliza um moralismo simplório, uma expectativa ingênua de que o combate à corrupção faria uma grande diferença para o país, a ponto de lançarmos mão dele como pauta política crucial.
Depois de fazer o máximo possível, em obras e palavras, para frear a Lava Jato e desacreditar o combate à corrupção, os oponentes fazem cara de surpresa (ou de malícia) pela decisão de Dallagnol de usar as vias políticas para desentupir os encanamentos nacionais
Devo novamente discordar, e com a máxima veemência. O problema da corrupção é, a um só tempo, um dos piores flagelos possíveis para o desenvolvimento nacional e um dos piores sintomas de enfermidade na cultura e na própria imaginação moral de uma nação. Para o seu desespero, defensores do combate à corrupção e gente como o próprio Deltan seguem obrigados a aturar essas denúncias obsoletas de moralismo, inclusive associando a devoção ao tema como se fora um traço doentio, ligado à religiosidade evangélica, e como expressão ingênua do senso comum sobre a dinâmica da mudança social e do desenvolvimento social.
Esses reclames são hoje mais descabidos do que já foram décadas atrás, quando a esquerda ainda podia se iludir como condutora do processo civilizatório. Mas é surpreendente que alguém ainda compareça em publico trajando esses trapos retóricos. Mesmo uma organização tão criticada pela direita como a ONU estabeleceu, em outubro de 2003, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, admitindo o lugar absolutamente crucial do tema para a civilização moderna. O Conselho de Direitos Humanos e o Alto Comissariado dos DH na ONU têm investido seriamente no assunto, reconhecendo a corrupção como uma das causas-raiz da violação de direitos humanos. A corrupção viola direitos, enfraquece os sistemas de educação, saúde, habitação e saneamento, e fragiliza a democracia. Todas as agendas sociais, tão animadamente defendidas por políticos progressistas em suas campanhas, são diretamente inviabilizadas pela corrupção sistêmica.
O problema da corrupção é, a um só tempo, um dos piores flagelos possíveis para o desenvolvimento nacional e um dos piores sintomas de enfermidade na cultura e na própria imaginação moral de uma nação
Se eu fosse um conselheiro político recomendaria, a qualquer partido político sério e que pretenda se comunicar seriamente com cristãos, em geral, e que deseje se fazer ouvir claramente em meio às mesmices da esquerda e da direita, concentrar-se nessas saliências cruciais: combate à corrupção, defesa da democracia com respeito às liberdades fundamentais, um programa de Direitos Humanos que seja realmente pluralista e voltado para o bem comum (e, aqui, uma mediação entre evangélicos e movimento LGBTQIA+ precisa ser construída), um compromisso pró-família e pró-vida, uma agenda ambiental forte e, não nos esqueçamos, trabalho e renda. São temas urgentes, e para alguns deles nem a esquerda nem Bolsonaro tem propostas decentes. Mas entre esses e tantos outros assuntos prementes, a conservação ambiental e o combate à corrupção me parecem os mais desamparados de todos. Se Deltan Dallagnol for capaz de compor uma frente legislativa forte e eficiente contra a corrupção sistêmica, se mostrará o homem certo na hora certa.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos