“O mundo em breve confrontará um novo e grave desafio no combate à Covid-19: a hesitação com a vacina.” (Cass Sunstein)
Cass Sunstein, atualmente professor em Harvard e um dos autores do best-seller Nudge, presidiu recentemente o grupo de consultoria técnica da OMS sobre Insights Comportamentais e Ciências da Saúde, para trazer recursos da ciência comportamental moderna no desenvolvimento de políticas de popularização da vacina (o relatório saiu em outubro). Quem conhece o trabalho de Sunstein concordará que foi uma sábia escolha da parte da OMS.
Sunstein foi quem cunhou a expressão “paternalismo libertário”, para descrever um estilo de governança no qual nem agimos de forma coerciva para fazer com que as pessoas cooperem, nem deixamos à vontade de cada um, mas empregamos incentivos inteligentes, sintonizados a partir da ciência comportamental e da psicologia social, de modo a favorecer convincentemente um curso de ação.
Ignorando por um momento os casos-limite nos quais a coerção ou o arbítrio deveriam prevalecer, concordo com Sunstein em que a maior parte das intervenções do Estado deveria seguir a lógica do paternalismo libertário. Ela está mais de acordo com a nossa natureza humana. Recentemente ele escreveu para o site Bloomberg sobre o enorme desafio de convencer as massas de aceitar a vacina, com muitos insights iluminadores. Sua visão sobre a coisa é, basicamente, de que deveríamos empregar de forma científica e eficiente todos os meios possíveis de incentivar e persuadir a população a se vacinar, adiando ao máximo qualquer ação coerciva.
Se uma pessoa realmente acha que tudo na vacina é uma conspiração, como você pensa que ela se sente ao ouvir que será obrigada a tomar a agulhada?
Mas esse artigo não é sobre os conselhos de Sunstein; é, antes, sobre a razão por que precisamos desesperadamente dos conselhos de Sunstein. Refiro-me a toda essa discussão doente, obtusa e inoportuna que se levantou a respeito da obrigatoriedade da vacina. Fôssemos um país normal (se é que isso existe), não estaríamos girando em círculos nessa dança da morte.
Bolsonaro se manifestou, com sua costumeira e infalível sabedoria presidencial, difamando a “vacina chinesa”, polemizando com o governador de São Paulo, intervindo na Anvisa e lançando seu projeto de centralizar toda a política de vacinação na União. Mas, julgando ações opostas impetradas pelo PDT e pelo PTB, o STF determinou que a vacinação contra a Covid-19 pode ser obrigatória, embora não forçada, e que os estados e municípios têm autonomia para aplicar sanções.
Cabe a pergunta: em quem vai cair a carapuça do autoritarismo?
“Meu corpo, minhas regras”
Todo mundo tem um amigo bolsonarista – se não, tem ao menos um parente próximo. Pense nessa pessoa como alguém comum; sem informação científica e que, por causa de sua formação pessoal, vê-se inclinado a acreditar em absurdos sobre a vacina. Agora, deixe a sua posição “iluminada” por um momento e calce os sapatos dela: se essa pessoa realmente acha que é tudo uma conspiração, como você pensa que ela se sente ao ouvir que será obrigada a tomar a agulhada?
O fato é que muitas pessoas à direita e pró-governo, extremamente ciosas de suas liberdades fundamentais, sentem-se profundamente violadas diante da ideia de vacina obrigatória. Como pode ser aceitável que o indivíduo seja submetido compulsoriamente a um exercício experimental e científico incerto, recebendo dentro de seu próprio corpo substâncias e pedaços de DNA ou de RNA de outro organismo, para beneficiar empresas X, Y e Z?
“Meu corpo, minhas regras!” –alguém poderia dizer. Mas seria correto privatizar assim os deveres para com a saúde?
Considerada abstratamente, a revolta não é sem sentido. O indivíduo tem uma soberania sobre si mesmo, e a dignidade da pessoa humana é o fundamento de todo o nosso sistema de direitos. No entanto, o corpo de cada um pertence também a um mundo, a uma espécie, e afeta o corpo dos outros de formas diversas. E devemos nos lembrar de que uma parte significativa da população admite muitas coisas compulsórias que fazemos com nossos corpos: serviço militar, impostos, proibição do aborto, proteção legal à instituição do casamento, voto obrigatório, manutenção das crianças na escola, obediência à autoridade policial e respeito à honra do outro. A vida comunitária exige, por sua natureza, a normatividade; limites, coerções e obrigações são inevitáveis se queremos algo que mereça o nome de “sociedade”.
Para alguns de sensibilidades libertárias, no entanto, a sociedade não existe. O que existe são agrupamentos de indivíduos, e nada além disso. E, para muitas pessoas de fora do campo das abstrações teóricas, especialmente aquelas em estado de vulnerabilidade social, ou de desempoderamento cultural (o eleitor de Bolsonaro, por exemplo), a sociedade é aquilo que não as inclui. Não é um objeto de amor, portanto. E, se não há sociedade, tampouco há “bem comum”.
O resultado disso é: libertinagem. Esse tipo de mentalidade atomizadora é uma das forças mais importantes de alienação social. Sem cultivar os pertencimentos e a responsabilidade comum pelo cultivo de nossos bens, deixamos os campos livres para florescer o ressentimento e aglutinações sociais doentias, como gangues, organizações criminosas, máfias, coletivos revolucionários, “gabinetes do ódio” e outras formas cancerosas de mobilização antissocial.
A mentalidade atomizadora que nega a sociedade e o “bem comum” é uma das forças mais importantes de alienação social
Não por acaso Mark Lilla notou o parentesco entre o individualismo antipolítico do reaganismo – e, por que não, do thatcherismo – com sua antipatia contra o Estado e a coletividade, e o individualismo pseudopolítico do identitarismo liberal e esquerdista. Cada lado, a seu modo, nega a existência de um bem comum, e cultiva em seus adeptos a raiva do “sistema”. Identitários e tradicionalistas são, no mais das vezes, pessoas com raiva legitimando a rapinagem do estabelecimento.
É assim que liberais “progressistas” desejam privatizar completamente a moralidade sexual, a ética da vida, a ordem familiar, o uso de drogas, e os estilos de vida em geral, a percepção de si e o próprio corpo, mas socializar todo o ônus que a liberação sexual e outras autonomias morais implicam, forjando um Estado paternalista e terapêutico. Afinal, se vamos ser adolescentes até morrer, precisamos de um pai-todo-poderoso. Por outro lado, querem controlar armas, empresas, manejo ambiental e a educação das crianças por meio de um Estado cada vez mais forte e onipresente, adotando um discurso de bem comum.
Enquanto isso, o nosso governo conservador-liberal – tradicionalista, na verdade – quer maximizar a liberdade para os pais das crianças, para porte de arma, de expressão sem limites (especialmente on-line), para não se vacinar, para a atividade econômica. Maximizar a liberdade, mesmo que isso possa afetar negativamente a socialização das crianças, agravar a nossa cultura de violência, piorar o desrespeito e a propagação de fake news, colocar em risco a saúde pública.
O corruptor da ordem
Mas em que sentido um governo tão descuidado com o bem comum e apaixonado pelas liberdades individuais poderia ser acusado de autoritarismo de facto?
Creio que, no olhar da esquerda, pelo desmonte das estruturas que ela ajudou a desenvolver para promover soluções coletivas que, bem ou mal, foram desenvolvidas tendo em mente o benefício da coletividade; e pelas intervenções cirúrgicas para eliminar em diversos setores da administração pública qualquer discurso divergente. Vimos essas intervenções na Justiça, no Ibama e no ICMBio, no Inpa, e na Saúde. De certo ponto de vista libertário, no entanto, parte desse desmonte não soa como autoritarismo, mas, pelo contrário, como desaparelhamento, menos regulação e maior autonomia individual.
É por isso que a acusação de autoritarismo contra Bolsonaro não cola direitinho; fica mal-ajeitada. Não é que ele não tenha os traços de uma personalidade autoritária; mas que a política de seu governo é muito mais de favorecer o arbítrio e desorganizar toda estrutura de cooperação que não o beneficie de modo claro. Foi assim com educação, com meio ambiente, com a Justiça, com as relações exteriores e com o combate à pandemia. Bolsonaro desfaz as estruturas ou as deixa cair de podres. Seu governo tem um... tempero anárquico.
Tal qual um pai autoritário e tóxico, mas sem o respeito da família, já adulta, Bolsonaro dá conselhos absurdos, “grita”, e é solenemente ignorado. O resto da família precisa se levantar e tomar decisões, enquanto ele lava as mãos, já que foi “impedido de agir”
No caso da pandemia isso foi horrorosamente claro: ele solapou sistematicamente todo esforço de união nacional e de cooperação internacional. Deixou desesperados (e, em alguns casos, bastante felizes) os entes estaduais e municipais da Federação, que desembestaram na carreira atrás de soluções particulares. Restou ao STF sacramentar essas autonomias, enquanto Bolsonaro prescrevia semanalmente a cloroquina a seus “pacientes”.
O mesmo procedimento é adotado agora para com as vacinas: tal qual um pai autoritário e tóxico, mas sem o respeito da família, já adulta, Bolsonaro dá conselhos absurdos, “grita”, e é solenemente ignorado. O resto da família precisa se levantar e tomar decisões, enquanto ele lava as mãos, já que foi “impedido de agir”. É o retrato da miséria em que se encontra a autoridade parental, religiosa e pedagógica masculina no Brasil: precisa ser “contornada” da melhor forma possível, do contrário arruinará a vida de todos.
Escrevemos sobre isso antes; a Presidência alimentou o caos dos pequenos autoritarismos no país. Ela não leva a sério os seus limites e responsabilidades. O bolsonarismo não é o único culpado, mas certamente é um dos maiores responsáveis pela corrupção da ordem, das instituições e do tecido social nacional. Pode dormir abraçadinho com o STF.
A oposição é hipócrita
É aí que a esquerda tem grandes dificuldades de construir uma resposta. Ela realmente veste a carapuça do autoritarismo quando, sob a terrível provocação do hospício bolsonarista, quer se adiantar para tornar as coisas “obrigatórias”. Ora, isso é exatamente do que Bolsonaro precisa: de bons argumentos para acusar a oposição de querer roubar a liberdade dos brasileiros.
Uma das razões por que, em parte, a esquerda e os liberais-progressistas não podem evitar cair como patos nessa armadilha é que acolhem compreensões libertárias da autonomia individual, do ponto de vista dos costumes, que são incompatíveis com suas alegações de preocupação com o bem comum – coisas que os comunitaristas apontaram repetidamente, até morrer de cansados –, mas, ao mesmo tempo, têm uma obsessão pela expansão do Estado.
Esse processo é, como já discutimos antes nessa coluna, a própria máquina de construção do “estado de natureza” hobbesiano. É patológico e irracional. Assim, a oposição vive com dois pesos e duas medidas.
Os liberais “progressistas” preferem lançar a família no fogo a admitir que seria interessante termos nudges estatais para que os pais não abandonassem suas casas, nem se divorciassem, evitando a proliferação de famílias monoparentais
O custo social da fragmentação das famílias, por exemplo, é gigantesco; mas os liberais “progressistas” preferem lançar a família no fogo a admitir que seria interessante termos nudges estatais para que os pais não abandonassem suas casas, nem se divorciassem, evitando a proliferação de famílias monoparentais. Ou nudges para que crianças e adolescentes evitassem sexo e risco de gravidez até a maioridade civil. Ou nudges contra o aborto, que teriam um impacto nas práticas sexuais e poderiam enfraquecer a nossa moderna cultura terapêutica e individualista. E por aí vai.
Mas de repente, diante de uma presidência irresponsável, a oposição tem sua nudez exposta. Num passe de mágica, desaparece o “meu corpo, minhas regras” em nome do “bem comum”. Não é irônico que os mesmos libertinos da esquerda e do progressismo liberal sejam punidos vergonhosamente, e em público, pelos libertinos conspiracionistas da direita? É um autêntico inferno de Dante, meus amigos; o fogo de seus prazeres agora queima as suas carnes.
Mas não me entendam mal; eu concordo com a oposição. A vacina deveria ser tomada por todos os brasileiros. Só penso que seu comportamento desgraçadamente hipócrita não passará desapercebido. Bolsonaro vai lembrar isso às suas bases, e seu argumento vai colar.
Fraternidade, bem comum e... vacina
Na mente de alguns leitores à esquerda subirá o pensamento óbvio: de que a sua versão do liberalismo moral é melhor que a versão desvairada do bolsonarismo, porque não custa a vida dos outros. Mas será mesmo? Milhões de seres humanos sendo assassinados ainda no ventre por nenhuma outra razão a não ser o desejo de transar irresponsavelmente e sem consequências são algo melhor que os 200 mil mortos da pandemia? E quanto à piora da saúde mental e o aumento dos suicídios, diretamente ligados ao agravamento do individualismo? Não sejam ridículos.
E quanto ao “genocídio negro”? Sabemos que ele não é perpetrado em primeiro lugar pelo Estado, mas por traficantes em comunidades carentes. Que teriam menos força para seduzir os jovens se estes últimos tivessem ambos os pais dentro de casa. Isso é verdade nos EUA, sobre o que Thomas Sowell e outros escreveram com propriedade, e é verdade sobre o Brasil. Os custos sociais e psicológicos da pornografia, da liberação sexual e do divórcio são conhecidos, e não recebem a devida publicidade simplesmente porque a elite cultural e gerencial que fiscaliza o fluxo de informações tem pouco interesse em ver tais informações à solta por aí.
Milhões de seres humanos assassinados ainda no ventre por nenhuma outra razão a não ser o desejo de transar irresponsavelmente e sem consequências são algo melhor que os 200 mil mortos da pandemia? Não sejam ridículos
O fato é que tanto a pseudopolítica liberal quanto a antipolítica bolsonarista estão juntinhas no desvario, e precisam ser superadas por uma retomada do bem comum e do princípio da fraternidade. Como a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 deixa claro, todos os seres humanos têm razão e consciência, e “o dever de agir uns para com os outros em espírito e fraternidade”. Trata-se de deveres. Deveres!
Se tivéssemos uma cultura de deveres e de responsabilidades não precisaríamos de tantos regramentos e de um STF que é a um só tempo vítima e algoz da mesma disfuncionalidade. Esses deveres precisam ser abertamente discutidos enquanto abandonamos discursos atomizadores e libertários no campo da moralidade pessoal. Mas, se isso for feito, baterá em “Chico” e em “Francisco” também: tanto a pseudopolítica quanto a antipolítica se alimentam da mesma doença moral.
Precisamos falar em ética da virtude, e sobre como educar para o uso responsável da liberdade. A importância das “minhas regras” precisa ter seu espaço relativizado para que cuidemos das coisas que nos são comuns, e das nossas regras.
Sob esse ângulo, faz mais sentido pensar no que é melhor para todos, e admitir riscos – como o de usarmos vacinas que não oferecem garantia total de eficiência ou de segurança, mas que no cômputo geral podem proteger melhor a comunidade. Assim como o fazem médicos que arriscam a saúde no exercício da profissão, ou policiais que arriscam a vida, ou jornalistas que arriscam a reputação e a segurança. Não se pode ser parte de uma comunidade e ter uma função essencial nela sem, em algum momento, correr risco de prejuízos em nome do bem comum.
Enfim, devo admitir que, embora veja a decisão do STF ontem como um mal, vejo-a como um mal menor; uma resposta precária a uma situação ainda mais precária causada por uma presidência inepta. Ao fim e ao cabo, estamos ainda presos no círculo vicioso da libertinagem e do autoritarismo. Mas que isso sirva de ocasião para propósitos firmes: vamos mergulhar a cara na economia comportamental e em uma teologia filosófica da comunidade, meus amigos. Vamos construir coisas melhores para esse país.
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