A liberdade de expressão está em crise no Brasil. O inquérito das “Fakenews” em curso no STF e as decisões polêmicas do Ministro Alexandre de Moraes em resposta aos excessos de comunicadores bolsonaristas, por um lado, e o estado de confusão entre as opiniões de jornalistas, juristas e intelectuais acerca dos limites da liberdade de expressão, por outro lado, lançam uma larga sombra de dúvida sobre nossa capacidade de efetivar esse direito fundamental.
Como é de costume em nossa coluna, nos interessamos sempre por aquilo que está além da superfície de nossos conflitos políticos e jurídicos; pelo estado do tecido social nacional e as fontes morais e espirituais de nossas crises pessoais e coletivas. Assim, ao tratar do uso de tecnologias modernas de informação para alimentar guerras cognitivas, tivemos ricas contribuições do Dr. Eric Araújo, da UFLA, e em seguida levantamos o tema da “sabedoria”, enquanto virtude necessária para a comunicação política.
Tendo isso em mente, convidamos agora o Dr. Lucas Nascimento, Analista do Discurso e professor da UEFS para nos ajudar a pensar eticamente sobre o modo como conversamos e nos comunicamos em público. Afinal, uma das melhores proteções a qualquer liberdade é o seu contínuo bom uso.
Boa leitura!
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Protegidas legalmente pela liberdade de expressão, muitas pessoas acham que podem dizer quase tudo no espaço público. Assim, no gozo dessa liberdade, humilham, ofendem e mostram-se pouco decentes em seus discursos. Isso nos acena para o quanto precisamos voltar à sabedoria dos antigos a fim de aprendermos com eles certa disposição de caráter que pode nos ajudar a viver uma vida melhor no século XXI. Essa disposição, Aristóteles a chamou de virtude, e uma das coisas que mais precisamos para a vida pública de nossa época, tão rachada por polêmicas e polarizações, é cultivarmos virtudes discursivas, uma vez que isso é uma questão de saúde espiritual, tanto para os indivíduos quanto para os ideais de bem comum e pluralidade democrática.
Se assumirmos essa disposição, podemos convir que nem tudo o que se pode dizer convém ser dito por alguém em certos ambientes e lugares. O que um casal diz entre quatro paredes pode ser extremamente constrangedor se expresso em público. O que um amigo diz a outro pode ser bem humilhante se dito por outra pessoa fora do contexto de uma amizade; inclusive, existem grupos sociais que trocam insultos como forma de afeto, o que seria inaceitável se feito por alguém de fora do grupo.
Diferentemente do que tem sido convencionalmente chamado de “politicamente correto”, os exemplos acima nos mostram que há certa plasticidade axiológica e semântica no uso da linguagem, mas nos apontam também, diferentemente do “politicamente incorreto”, que existem certos critérios e valores, próprios a uma dada época, lugar e cultura, que os sujeitos devem levar em consideração ao tomarem a palavra, caso queiram que seu enunciado seja moralmente aceito. Ou seja, caso queiram ser virtuosos em seu discurso. A questão não está, por assim dizer, no âmbito legal/ilegal, mas na dimensão moral.
No duro contexto de tensões e mortes pelo novo coronavírus, dois enunciados, em especial, foram moralmente condenados no país. Se a todo momento estamos pronunciando um “e daí?” ou um “ainda bem”, eles não têm igual valor a depender de quem, quando e onde se pronunciam. Em abril, por exemplo, ao ser questionado por uma jornalista sobre os números de mortos na pandemia, o presidente Jair Messias Bolsonaro disse “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”, o que causou grande indignação. Poucos dias depois, em maio, o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, em entrevista à Carta Capital, disse "ainda bem que a natureza..., contra a vontade da humanidade, criou esse monstro chamado coronavírus”, o que causou também indignação, custando-lhe pedido de desculpas.
Sem querer fazer uma equivalência entre o conjunto de enunciados de Lula e de Bolsonaro, é importante questionar: o que há de comum em ambas as falas? Se esses enunciados foram objeto de condenação moral por parte da mídia e de setores da sociedade, eles geraram o que a analista de discurso francesa Marie-Anne Paveau, em sua obra “Linguagem e moral: uma ética das virtudes discursivas”, chama de acontecimento discursivo moral. Houve na ocasião um conjunto de reações e comentários carregados de julgamento moral a respeito dessas falas, apontando para uma falta de virtuosidade nos discursos proferidos.
Os enunciados de Bolsonaro e de Lula não falam, no entanto, simples e tão somente, dos sujeitos que os pronunciaram, os quais se posicionam politicamente em lados opostos, mas se revelam sintomáticos da lacuna de pensarmos e praticarmos a sabedoria no discurso público. Na arte retórica, uma tradição que remonta de Aristóteles à nova retórica de Chaïm Perelman, aprendemos que o orador se constrói pela projeção que ele faz de seu auditório, portanto, ao se analisar o que um orador diz, pode-se conhecer o auditório presumido. Quando políticos importantes de nossa época, portadores privilegiados da fala pública, proferem enunciados dignos de condenação moral, pode-se pensar que eles se sentem à vontade ante a seu auditório para dizerem o que dizem; e, de algum modo, orador e auditório estão implicados nesse processo.
Se muitos enunciados dessa natureza ganham espaço na fala pública – e há uma coleção deles, já que os dois supracitados são apenas exemplares -, é porque nossa cultura política e pública ainda aceita esse tipo de discurso, mesmo que em alguns contextos a “opinião pública” se indigne. Isso, na verdade, é um problema que remete ao processo de formação cultural e política da sociedade brasileira, de maneira que urge refletirmos teórica e pedagogicamente sobre as práticas discursivas em sua dimensão moral, e não apenas nas dimensões pragmática e social.
Nosso problema, portanto, não está simplesmente no plano da competência comunicativa, mas na falta do que Paveau chama de virtude discursiva. Esta não diz respeito apenas a uma questão de habilidades ou de “inteligência prática” empregadas para se obter sucesso em certa situação; está ligada, todavia, à finalidade do ser humano de viver para a realização do bem, o que remonta a uma tradição antiga da filosofia ética aristotélica. Lá em Ética a Nicômaco, Aristóteles assegura que “A virtude diz respeito às paixões e ações em que o excesso é uma forma de erro, assim como a carência, ao passo que o meio-termo é uma forma de acerto digna de louvor; e acertar e ser louvada são características da virtude”.
O que vemos de modo recorrente na fala pública? Excessos e inadequações, ou seja, a falta dessa mediania (meio-termo) de que fala o estagirita. Desmedidas essas que se dão, na maioria das vezes, infelizmente, em nome da sinceridade, da verdade, da própria moralidade e, sobretudo, energizadas por polêmicas de natureza ideológica, política, religiosa etc.; sem falar das disputas pelo poder.
Sim, a boa medida em qualquer coisa não é uma tarefa fácil. E Aristóteles sabia muito bem disso: “ser virtuoso requer esforço. De fato, é difícil encontrar o ponto mediano em qualquer coisa; por exemplo, nem todos são capazes de encontrar o ponto mediano de um círculo, salvo aqueles que conhecem [geometria]. Igualmente, irar-se é possível para todos, coisa fácil, e dar e gastar dinheiro; porém fazê-lo tendo como alvo a pessoa certa, na medida certa, na ocasião certa, com o objetivo certo e da maneira certa – isto não está ao alcance de todos e nem é fácil; daí ser o bem raro, louvável e nobre”. Trazer, então, essa moderação para o âmbito mais específico do discurso não é um empreendimento fácil, mas necessário.
Justo nessa missão, Marie-Anne Paveau tem mostrado como a dimensão moral faz parte do uso comum da linguagem cotidiana e do discurso público. Assim, em diálogo interdisciplinar entre teorias do discurso, psicologia (cognição) e filosofia moral (epistemologia das virtudes e ética aristotélica), ela, a partir das noções de virtude intelectual e virtude moral, propõe a noção bastante formidável de virtude discursiva. Esta é “uma disposição do agente a produzir discursos ajustados aos valores vigentes em seu ambiente, ou seja, ajustados aos outros agentes, ao conjunto dos discursos produzidos à realidade”.
Um exemplo da falta de virtude discursiva dado por Paveau é o de Didier Lombard, presidente da France Telecom. O empresário, no Programa Arrêt sur image, de 15 de setembro de 2009, fez uma declaração a respeito dos suicídios, vários ocorridos em sua empresa naquele ano: “É preciso pôr um ponto final nessa moda do suicídio que evidentemente choca o mundo”. No dia seguinte ele foi a público pedir desculpa pelo uso infeliz da expressão “moda do suicídio”. A autora em sua obra traz vários exemplos de discursos moralmente desajustados aos valores e à memória discursiva de seus ambientes, desde a mentira de Bill Clinton a discussões em torno da acusação de plágio ao escritor francês Michel Houellebecq.
Aqui no Brasil, sobram exemplos que poderíamos analisar, desde “Nós podemos fazer o diabo quando é a hora da eleição” (ex-presidente Dilma Rousseff, em 2013), “união homossexual não é normal. O reto não foi feito para ser penetrado. Não haveria condição de dar sequência à nossa raça” (deputado federal e pastor Marco Feliciano, em 2013), “Vamos fuzilar a petralhada” (então deputado federal Jair Bolsonaro, em 2018) a “Jair Bolsonaro está com Covid-19. Torço para que o quadro se agrave e ele morra” (jornalista Hélio Sshwartsman, em 2020); todos esses, em algum nível desajustados e, portanto, carentes de mediania discursiva.
Ora, se falta um senso ético e virtuoso no discurso de nossos líderes e influenciadores públicos, as violências verbais, as demonizações e as indecências discursivas nas redes sociais nos mostram como precisamos ser educados e educar para a sabedoria prática aplicada ao discurso. Essa é uma tarefa árdua, mas precisamos urgentemente aceitar o desafio teórico, metodológico e prático de refletir, analisar e educar para as virtudes discursivas, porque, sobretudo em tempos de redes sociais, isso é uma questão de saúde para nossa vida privada, pública e democrática.
*Lucas Nascimento é analista do discurso, com mestrado em Estudo de Linguagens (UNEB) e doutorado em Língua e Cultura (UFBA). É professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos (PPGEL/UEFS).
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