Ouça este conteúdo
Foram recentemente publicados os resultados da sétima rodada da World Values Survey (2017-2022), a mais importante investigação em larga escala de valores humanos e sua relação com o desenvolvimento socioeconômico e a democracia. A WVS vem sendo realizada desde 1981, por iniciativa dos cientistas políticos Ron Inglehart e Christian Welzel, e já foi chamada de o “telescópio Hubble” da pesquisa social. O assunto foi discutido na semana passada em um artigo esclarecedor na The Economist, e tem relação direta com um tema frequente da nossa coluna: os fundamentos morais da corrente guerra cultural tupiniquim.
Uma das hipóteses de Ronald Inglehart e de seus associados era a de que os valores de sociedades pobres seriam tradicionalistas e coletivistas em razão da insegurança social e econômica, de modo que a redução da pobreza e a melhoria na qualidade de vida tornariam essas sociedades mais racionais e individualistas. Os mais pobres estariam muito ocupados com a sobrevivência material, e os mais ricos, livres dessas ansiedades, estariam mais ocupados com a autoexpressão. Daí sua vida moral e política ser denominada por Inglehart como pós-materialista.
Essa hipótese depende do fato inquestionável de que as sociedades ocidentais mais ricas são mais racionalistas e mais individualistas. Esses valores estão plausivelmente associados com a riqueza e com a ordem democrática, na qual a liberdade e o protagonismo individual se sobrepõem a coerções comunitárias e tribais. Por outro lado, altos níveis de insegurança social e econômica tornam o pertencimento familiar, religioso e tribal muito mais necessário.
Se o padrão de associação entre riqueza, individualismo e secularismo segue confirmado, os resultados sugerem que essa associação não é necessária, e que talvez seja possível um desenvolvimento socioeconômico sem a hegemonia do individualismo expressivo
Contrariando as expectativas, no entanto, os resultados da última rodada da WVS sugerem uma realidade mais complexa. Se 40 anos atrás, quando a pesquisa começou, 40% da população vivia em extrema pobreza e os mais pobres eram mais tradicionalistas e coletivistas, hoje apenas 8% da população vive em extrema pobreza, e boa parte subiu para a classe média. No entanto, a mudança de valores não seguiu o padrão linear esperado por Inglehart e Welzer.
Os resultados atuais, na verdade, apresentam, sim, um padrão: os países tendem a se aglomerar em dois polos: o tradicionalista-coletivista e o racionalista-individualista. A maior parte dos países pobres está no primeiro quadrante, e a maior parte dos países ricos está no segundo. No entanto, os países mais ricos, como a Europa protestante e os Estados Unidos, estão avançando em direção ao individualismo e ao secularismo muito mais rapidamente que os mais pobres, incluindo entre estes os que estão se afastando da pobreza. E alguns dos emergentes, como os povos do catolicismo ortodoxo e do islamismo, estão se tornando ainda mais tradicionais. Povos “confucianos”, incluindo Japão, Coreia do Sul e China, mostram uma combinação de valores modernos e tradicionais, mas nada tão limpidamente liberal quando a Europa. Os países latino-americanos se moveram um pouco mais consistentemente na direção esperada, com maior secularismo e individualismo acompanhando o desenvolvimento econômico e social; ainda assim, a força da religião e do conservadorismo é enorme.
Coincidentemente, o apoio à democracia diminuiu em vários países mais pobres, a despeito da redução da pobreza, com a ascensão de neopopulistas de direita e de esquerda. Esse fato, que já vinha sendo observado antes dos resultados do WVS, é regularmente invocado para recomendar os valores liberais sustentados pelo quadrante mais rico do mundo.
Embora ainda no aguardo de análises competentes, aventuro-me a três comentários. Primeiro, no tocante ao que os dados “provam”: se, por um lado, o padrão de associação entre riqueza, individualismo e secularismo segue confirmado, os resultados sugerem que essa associação não é necessária, e que talvez seja possível um desenvolvimento socioeconômico sem a hegemonia do individualismo expressivo, que é a grande ideologia do mundo liberal. Não quero dizer, com isso, que as alternativas disponíveis sejam recomendáveis; pessoalmente, entre culturas islâmicas, “confucionistas” e ortodoxas, prefiro estar exatamente onde estou: no ocidente liberal e democrático. Ainda assim, mesmo que o mundo ocidental e latino seja mais individualista e racionalista que o resto do planeta, isso não significa que ele se reduza a isso. A força dos valores cristãos ainda é grande no ocidente, e uma importante parcela da população nesses países tem inclinações mais conservadores e coletivistas.
Colocando em outros termos: do fato de que a riqueza das nações ocidentais seja acompanhada de maior individualismo expressivo e do secularismo, não se segue que ela dependa da hegemonia desses valores, e muito menos que seu desenvolvimento tenha sido causado por eles. O sociólogo Rodney Stark diria, por exemplo, que as bases do desenvolvimento e da riqueza ocidental foram lançadas pela história cristã anterior das nações europeias.
Meu segundo comentário diz respeito à política da hegemonia liberal-progressista. Analistas como Christophe Guilluy e David Goodhart, entre outros, vêm chamando a atenção para o conflito interno das sociedades liberais: entre a classe cosmopolita, ou os “anywhere”, uma elite cultural liberal e secularizada; e o proletariado cultural, ou os “somewhere”, mais voltados para a tradição e o laço comunitário. A hegemonia dos valores liberais-progressistas é a hegemonia dessa classe, que tende a se espalhar internacionalmente com a globalização, e que aliena parte da população em todos os lugares onde se estabelece. Essa hegemonia é um fenômeno histórico e político, e não pode ser naturalizada; não pode ser simplesmente tomada como fato neutro, livre de discussão valorativa. Aqueles preocupados com o futuro da democracia precisam questionar a incapacidade das democracias liberais de incorporar suas populações conservadoras.
Do fato de que a riqueza das nações ocidentais seja acompanhada de maior individualismo expressivo e do secularismo, não se segue que ela dependa da hegemonia desses valores, e muito menos que seu desenvolvimento tenha sido causado por eles
Meu terceiro comentário, associado aos dois primeiros, diz respeito à psicologia moral do WVS. Quando Ron Inglehart iniciou o seu projeto, empregou as ideias de Maslow para argumentar que em sociedades desenvolvidas a velha luta de classes “materialista” seria substituída por lutas “pós-materialistas”, mas voltadas para a autonomia e a autoatualização. Essa visão forma os pressupostos históricos do WVS.
No entanto, àquela altura ainda não havia um modelo de psicologia moral capaz de integrar o estudo das bases evolutivas do comportamento moral humano e o conhecimento dos imaginários morais oriundo da antropologia cultural. O trabalho pioneiro de Jonathan Haidt e seus colaboradores na construção da Teoria dos Fundamentos Morais alcançou pela primeira vez uma síntese bem fundamentada empiricamente e com potencial preditivo.
Segundo essa teoria, os valores “conservadores” e “coletivistas” não seriam meramente funções de uma situação de insegurança material, a ser superada pelo desenvolvimento socioeconômico, mas resultantes de módulos cognitivos universais, selecionados pela evolução darwiniana da espécie humana. Haidt mostrou que a maioria das culturas opera com cinco ou seis “fundamentos morais” básicos (“cuidado”, “equidade”, “lealdade”, “autoridade” e “pureza”), mas nos ambientes mais liberais, que ele denominou W.E.I.R.D. (“ocidentais, educados, industrializados, ricos e democráticos”), haveria uma inflação dos valores mais individualizantes (cuidado e equidade) e um esvaziamento dos valores coletivizadores (lealdade, autoridade e pureza). A moralidade WEIRD é mais utilitária, racionalista e individualista, e a mais consistente com a vida nas grandes cidades modernas. É a moralidade da elite cosmopolita e, frequentemente, das esquerdas. Isso explica muita coisa na política nacional, como já discutimos nessa coluna.
A Teoria dos Fundamentos Morais possibilitou uma descrição mais nuançada da moralidade sustentada pelas elites culturais e econômicas do ocidente, em comparação com a imaginação moral de outros povos, e detectar o viés liberal-progressista dentro da psicologia social tradicional. O próprio mundo acadêmico, incluindo a psicologia social, a ciência política e as ciências sociais em geral, tende a reproduzir a mentalidade WEIRD em sua interpretação da mudança social, falhando em tratar as inclinações mais sociocêntricas e conservadoras de outros povos e até mesmo de parte das democracias ocidentais como uma forma sadia e orgânica de experiência moral, e falhando em problematizar os efeitos sociais e políticos da hegemonia liberal.
Mas discussões animadoras vêm acontecendo a respeito disso. A equipe britânica do World Values Survey iniciou no ano passado uma inédita cooperação com Jonathan Haidt e com o pesquisador de Harvard Mahammad Atari, no sentido de incorporar perguntas do Questionário de Fundamentos Morais visando ampliar e refinar o WVS. Essa cooperação pode não apenas ajudar a explicar a relação entre valores morais e desenvolvimento socioeconômico e político, mas reduzir o viés ideológico na investigação científica da sociedade.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos