– E aí, foi pra rua contra o Gilmar?
– Claro que não.
– Por quê?
– Não sou gado.
– Quem disse que aquilo era gado?
– Você foi?
– Não.
– Então você também não quer ser gado.
– Nada a ver. Não acho que era manifestação de gado.
– Era manifestação de que, então?
– De robô.
– Deixa de ser ignorante. Robô fica na internet. Gado é que se espreme nas muvucas por aí.
– Errado. Gado não tem inteligência pra perceber manobra de gênio como a do Gilmar pra soltar o Lula no grito. Só robô capta isso.
– Já viu robô suado? Já viu robô mancando? Tô falando que é gado.
– Engano seu. A robótica evoluiu muito, eles simulam tudo. Eu vi robô grisalho, robô em carrinho de bebê... Só não vi robô sangrando porque é tipo procissão, não tem porrada, não tem pneu... Totalmente robotizado mesmo.
– Aí eu tenho que concordar. Não tem alma.
– Tédio absoluto. Nem entro mais em rede social. Ali é o berço da robotização.
– Conseguiram criar o gado robotizado.
– Não tinha pensado nisso. Tá aí, pode ser.
– Só uma dúvida: como você viu tanto detalhe assim se não apareceu quase nada na televisão e você não vê mais rede social? Tu foi ou não foi na manifestação?
– Claro que não fui! Tá me estranhando? Acha que eu vou entrar em rebanho?
– Rebanho? Não era robô?
– Ué, se é gado robotizado eu posso dizer que era rebanho de robô...
– Tem razão. São muitos conceitos, a gente até se perde.
– Conceito é tudo.
– É o que nos diferencia da boiada. Nós dominamos a conceituação dos estados do ser que denotam a escalada protofascista nas mentes obscurecidas pela tentação totalitária.
– Exato. Foi assim que o Alexandre Frota conquistou o Dória.
– Assim como?
– Postulando a conceituação implacável como arma letal dos civilizados contra os brutos.
– Foi assim?
– Foi. Lembra do Rodrigo Maia aos prantos com as palavras do Frota, sob o olhar comovido do Dória?
– Claro que lembro. Foi o flagrante mais eloquente da democracia brasileira depois da foto do Itamar com a Lilian Ramos sem calcinha no Sambódromo.
– Pois é. Ninguém acertou a legenda daquela foto. Falaram em heróis da dissidência fascista, primavera do Centrão, desbunde tucano... Mas o certo seria: “lágrimas da conceituação”.
– Me emocionei agora.
– Aí você entende o choro do Maia.
– Total. Mas voltando à minha pergunta: como você soube dos detalhes da manifestação que não houve?
– Não é que não tenha havido. É que era tudo gado, robô e milícia, e isso não é gente, entendeu? Quantas vezes vou ter que te explicar?
– Entendi. Mas como é que você soube dos...
– Porra! Que insistência! Sei lá como eu soube! Já falei que não vejo mais rede social. Deve ter sido WhatsApp. Tenho uma tia miliciana que vive me mandando fake news.
– Ah, então foi por isso que não se viu quase nada no noticiário... Era fake news!
– Exatamente! Eu dando aqui mil voltas pra explicar e você resume em duas palavras... Obrigado!
– Imagina, parceria intelectual é assim. Achamos o conceito juntos.
– Representamos a razão contra o ódio. E desculpe a minha exasperação, é que não aguento mais tanta intolerância e mentira.
– Compreendo totalmente. É angustiante viver no meio de autômatos. Além de viver ameaçado por uma tia miliciana, você ainda deve estar tendo que aguentá-la comemorando a aprovação da prisão em segunda instância na CCJ da Câmara.
– Exatamente. A milícia robotizada forjou uma manifestação nacional e assim forçou os representantes do povo a agir contra a democracia.
– Escandaloso. Todo mundo sabe que democracia é o que o Gilmar disser que é.
– No fundo o que eles querem é encarcerar os guerreiros do povo brasileiro que ficaram ricos roubando honestamente.
– A boiada robotizada detesta quem dá certo.
– Chega de ódio!
– Chega de mentira!
– Viva eu!
– Viva eu também!