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Biografias em flor
| Foto: Pixabay

O senador honesto interroga o médico responsável:
– Por que o senhor aceitou ir para esse governo?
– Pela biografia.
– Que biografia?
– A minha.
– Eu sei que é a sua, companheiro. Perguntei o que tem a ver a sua resposta com a minha pergunta. Biografia todo mundo tem.
– É verdade. Mas há biografias e biografias.
(impaciente) – O senhor é sempre tão técnico assim no seu trabalho?
– Sim. Sou um profissional eminentemente técnico. É importante para a minha biografia.
– A próxima vez que tu falar de biografia aqui eu vou...
– Calma. Não preciso mais falar de biografia. Já consegui o que eu queria nesse departamento.
– O quê?
– Incrementar minha biografia.
– Trabalhando num governo desses? Que eu inclusive estou trabalhando pra derrubar?
– Pode derrubar. Isso não vai alterar em nada o meu currículo.
– É, faz sentido. Mas por que você saiu tão rápido do governo?
– O senhor achou rápido? Eu achei que até demorou.
– Menos de um mês como ministro? Isso é longo para o senhor?
– Uma eternidade. Bastaria um dia pra dar uma bombada na minha bio... desculpe, no meu currículo. Fui até generoso.
– O senhor disse que o governo é uma bagunça, que o clima era péssimo, etc. Por que não declarou isso quando saiu do cargo? Por que esperou um ano?
– Porque só tive vontade de contar isso diante de um senador honesto.
– Muito obrigado. O senhor é lindo.
– O senhor é charmoso.
– O senhor é eminentemente técnico.
– O senhor é eminentemente um grande brasileiro e aquela montanha de inquéritos que abriram contra o senhor é pura inveja da sua retidão, e...
– Bem, vamos voltar aqui para o mérito...
– O senhor tem muito.
– O que?
– Mérito. O senhor é a mais completa tradução do mérito. Meritíssimo! Meritocrático! Meritômano! Meritocôndrio! Meritossintético! Meritoplásmico! Merito...
– Chega!
– Ué, estou te elogiando, excelência...
– Tá bom, obrigado. Mas é que eu preciso extrair logo a manchete, a imprensa tá esperando. Então seja mais específico por favor.
– Ok. Serei específico: o seu grande mérito é ter virado herói de uma imprensa que o tratava como um excremento. Só os grandes alquimistas conseguem isso! E eu diria até que...
– Cala a boca! Não é nada disso. Facilita o meu trabalho, porra. Fala logo aí a palavrinha mágica.
– Ok. Cloroquina.
– Ufa! Até que enfim. Muito obrigado. Desculpa aí a minha grosseria. É que às vezes a vida de um senador é muito estressante e...
– Imagina, excelência. Não precisa se desculpar. De estresse eu entendo. Sou médico, esqueceu?
– É, tinha até esquecido. Então o doutor me entende.
– Totalmente. E confesso que eu mesmo estou até hoje de spa em spa para curar o estresse da minha passagem pelo governo.
– Depois de um ano aquelas quatro semanas ainda te fazem sofrer?
– Muito. Tenho até pesadelos. Num deles eu pegava a minha bio... o meu currículo e tinha simplesmente desaparecido a palavra “ministro”. Acordei aos prantos.
– Ah... É... Posso imaginar... Mas doutor... Voltando: então o senhor ia dizendo que a cloroquina...
– Foi horrível. Eles queriam me obrigar a pronunciar essa palavra maldita. Mas eu fiquei firme e saí do governo.
– Bravo! Anotaram aí, caríssimos jornalistas? “Ministro deixou o governo por causa da cloroquina”. Não vão errar, hein? Ministro querido, muito obrigado pelo seu depoimento sincero e corajoso.
– Ué, já acabou? Mas eu ainda nem falei da aula magna que eu dei como professor visitante na universidade de...
– Some daqui, seu chato!

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