O senador honesto interroga o médico responsável: – Por que o senhor aceitou ir para esse governo? – Pela biografia. – Que biografia? – A minha. – Eu sei que é a sua, companheiro. Perguntei o que tem a ver a sua resposta com a minha pergunta. Biografia todo mundo tem. – É verdade. Mas há biografias e biografias. (impaciente) – O senhor é sempre tão técnico assim no seu trabalho? – Sim. Sou um profissional eminentemente técnico. É importante para a minha biografia. – A próxima vez que tu falar de biografia aqui eu vou... – Calma. Não preciso mais falar de biografia. Já consegui o que eu queria nesse departamento. – O quê? – Incrementar minha biografia. – Trabalhando num governo desses? Que eu inclusive estou trabalhando pra derrubar? – Pode derrubar. Isso não vai alterar em nada o meu currículo. – É, faz sentido. Mas por que você saiu tão rápido do governo? – O senhor achou rápido? Eu achei que até demorou. – Menos de um mês como ministro? Isso é longo para o senhor? – Uma eternidade. Bastaria um dia pra dar uma bombada na minha bio... desculpe, no meu currículo. Fui até generoso. – O senhor disse que o governo é uma bagunça, que o clima era péssimo, etc. Por que não declarou isso quando saiu do cargo? Por que esperou um ano? – Porque só tive vontade de contar isso diante de um senador honesto. – Muito obrigado. O senhor é lindo. – O senhor é charmoso. – O senhor é eminentemente técnico. – O senhor é eminentemente um grande brasileiro e aquela montanha de inquéritos que abriram contra o senhor é pura inveja da sua retidão, e... – Bem, vamos voltar aqui para o mérito... – O senhor tem muito. – O que? – Mérito. O senhor é a mais completa tradução do mérito. Meritíssimo! Meritocrático! Meritômano! Meritocôndrio! Meritossintético! Meritoplásmico! Merito... – Chega! – Ué, estou te elogiando, excelência... – Tá bom, obrigado. Mas é que eu preciso extrair logo a manchete, a imprensa tá esperando. Então seja mais específico por favor. – Ok. Serei específico: o seu grande mérito é ter virado herói de uma imprensa que o tratava como um excremento. Só os grandes alquimistas conseguem isso! E eu diria até que... – Cala a boca! Não é nada disso. Facilita o meu trabalho, porra. Fala logo aí a palavrinha mágica. – Ok. Cloroquina. – Ufa! Até que enfim. Muito obrigado. Desculpa aí a minha grosseria. É que às vezes a vida de um senador é muito estressante e... – Imagina, excelência. Não precisa se desculpar. De estresse eu entendo. Sou médico, esqueceu? – É, tinha até esquecido. Então o doutor me entende. – Totalmente. E confesso que eu mesmo estou até hoje de spa em spa para curar o estresse da minha passagem pelo governo. – Depois de um ano aquelas quatro semanas ainda te fazem sofrer? – Muito. Tenho até pesadelos. Num deles eu pegava a minha bio... o meu currículo e tinha simplesmente desaparecido a palavra “ministro”. Acordei aos prantos. – Ah... É... Posso imaginar... Mas doutor... Voltando: então o senhor ia dizendo que a cloroquina... – Foi horrível. Eles queriam me obrigar a pronunciar essa palavra maldita. Mas eu fiquei firme e saí do governo. – Bravo! Anotaram aí, caríssimos jornalistas? “Ministro deixou o governo por causa da cloroquina”. Não vão errar, hein? Ministro querido, muito obrigado pelo seu depoimento sincero e corajoso. – Ué, já acabou? Mas eu ainda nem falei da aula magna que eu dei como professor visitante na universidade de... – Some daqui, seu chato!