Um democrata culto diante de um dissidente do fascismo:
– Parabéns pela sua coragem.
– De quê?
– Bem... De ir ao coração do obscurantismo, testemunhar a gestação do ovo da serpente e romper com essa estrutura de dominação suprainstitucional que se insinua sobre a democracia.
– Ah, isso é mermo.
– Como foi que você teve esse despertar?
– Parceiro, na real, meu despertador tá quebrado. Num me atrasei pra vir aqui porque o meu cachorro me deu uma lambida na cara bem na hora. Me amarro no meu cachorro.
– Poxa, que bacana. Admiro muito quem respeita os animais.
– Quem falou de respeito, animal? Meu cachorro é meu amigo.
– Ah, claro. Sim, amizade, respeito... São aspectos de um mesmo conjunto de valores. Isso me lembra um postulado, acho que foi Heidegger...
– Dobermann.
– Hein?
– A raça do cachorro é Dobermann.
– Ah, sim. Excelente raça!
– Meio traíra.
– Bem, depende de cada um...
– Tá chamando meu cachorro de traíra, parceiro?!
– Não! Claro que não. Foi você quem disse que...
– Eu disse que a parada da trairagem é uma parada dessa raça. Mas o meu não é.
– Que bom. Confiança é tudo! Por falar nisso, voltando... Quando foi que você perdeu a confiança nos seus ex-aliados? Foi no momento em que você descobriu que eles eram fascistas?
– Sei lá, parceiro. Eu vi a galera detonando os cara, e detonar é uma parada que eu curto.
– Entendi... E eles respeitaram a sua decisão soberana de ruptura democrática ou nessa hora se revelaram desleais e mostraram toda a propensão ao despotismo?
– Eu não tenho nada contra o deputismo, acho deputado uma profissão como outra qualquer.
– Desculpe, acho que não me fiz entender. Me referi a despotismo, propensão despótica, autoritária...
– Ah, isso é mermo.
– O quê?
– Isso aí que tu falou.
– O grupo político que está no poder tem propensão despótica?
– É.
– Tem neurose autoritária e quer suprimir as liberdades, interferindo de cima para baixo na autonomia do indivíduo enquanto ser social e usando o Estado como biombo para a mais hedionda tirania?
– É.
– Estou impressionado com o seu relato. Como pudemos chegar a esse ponto?
– Aí é de cada um. Eu vim de uber.
– Certo... Que bom ainda termos soberania sobre as nossas decisões de ir e vir.
– É, mas num sei se vai ficar assim não.
– Você acha que eles vão implantar uma ditadura?! Você poderia dizer quando o projeto ditatorial será implantado de fato e a grande noite cairá sobre o continente?
– Essa parada daí num tô ligado não. Falei que num vai ficar assim a parada do uber.
– Como assim?
– Parceiro, os taxista tão puto e vão meter a porrada nesses uber. Que tá barato pra c... mermo. Pra mim tá ótimo, mas se eu fosse taxista metia a porrada também.
– Sei... Entendo o seu ponto! A relativização é a beleza da democracia, não é mesmo?
– Beleza pura.
– Então concordamos! Viva o diálogo democrático! Chega de fascismo!
– Já é.