Estamos no ano de 2050 e uma junta de historiadores continua debruçada sobre o longínquo (e estranho) ano de 2020. A cada semana um membro da equipe precisa ser retirado e enviado a uma quarentena rigorosa para descontaminação espiritual, de tão pesado que é o trabalho.
Mas a junta é abnegada e está avançando no front da arqueologia cultural – já tendo alcançado a certeza científica de que 2020 significou, na curva evolutiva da humanidade, o pico de disseminação das falsas éticas. Deu-se ali praticamente uma hecatombe moralista fundada na hipocrisia: “Barra pesada”, resumiu um dos cientistas da junta, que pediu para não ser identificado.
O trabalho corre em sigilo total, mas conseguimos o vazamento do rascunho de uma primeira súmula sobre a falsa ética que explodiu em 2020 e publicamos a seguir, com exclusividade:
- “Os próximos 15 dias serão decisivos no enfrentamento ao coronavírus”. Este alerta enigmático foi captado em discursos de governadores brasileiros tanto em abril, quanto em julho de 2020 – levando os pesquisadores de 2050 à hipótese bastante provável de que no ano em estudo o tempo era contado de outra forma, num sistema em que cada dia podia levar três meses ou mais, dependendo da região do país e do partido do governador.
- “Se puder, fique em casa”. Essa foi a frase que mais intrigou os historiadores. Como aparentemente era uma recomendação para barrar uma epidemia, eles não conseguem entender o que acontecia na versão “se não puder”. Isto porque há pouquíssimos registros de slogans ou palavras de ordem para quem saía de casa – e há vários registros de aglomerações em transportes sem nenhuma ação disciplinadora do Estado, que por outro lado algemava e batia em mulher sozinha na praça ou na praia. Era tudo muito estranho nessa época.
- “Use máscara em casa”. Por incrível que possa parecer, havia seres humanos em 2020 que se sentiam (e se diziam) éticos ao tentar empurrar o Estado para patrulhar o interior de residências em busca de quem não estivesse usando máscara – fingindo que assim bloqueariam o contágio do coronavírus e salvariam vidas. (OBS: Eles diziam amar a democracia). E também queriam que alguém fechado sozinho no seu próprio carro sem máscara fosse considerado genocida em potencial. Os historiadores estão tipificando esse fenômeno antropológico como “Complexo de Zorro”.
- “Dane-se a economia”. Com uma habilidade retórica impressionante, os fundamentalistas da Seita da Terra Parada – corrente mística dominante em 2020 – faziam milhões de pessoas acreditarem que os que não seguissem sua cartilha eram criaturas desumanas e só pensavam em dinheiro. Hoje sabemos que morreu mais gente de asfixia social do que de coronavírus, mas na época a ordem unida para parar o mundo como seguro de vida era praticamente inquestionável. Alguns historiadores estão comparando esse tabu com o da Terra como centro do universo, que também deu muita briga e demorou a cair.
- Conclusão preliminar da junta de historiadores: o ano de 2020 foi o Pico dos Hipócritas. Uma elite intelectual que se apresentava como libertária levou ao extremo seu expediente malandro de viver patrulhando os outros para proteger a si mesma – numa espécie de jardim das delícias burguesas, também conhecido na época como “curralzinho vip”. Com a epidemia, eles foram tão longe no lockdown mental que, em dado momento, só não era expulso do clube quem inserisse em todas as suas mensagens a ideia de prisão. Os historiadores de 2050 estão convictos de que 2020 foi o ano mais reacionário da história – e que dificilmente um fenômeno similar voltará a atingir a humanidade de forma tão obscura.
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