| Foto: EFE
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O Brasil gostou de ter o mundo aos seus pés através do futebol. Foi a superação do complexo de vira-latas, na psicanálise baldia imortalizada por Nelson Rodrigues. Em 2022 se completam 20 anos que o país teve pela última vez a glória máxima da Copa do Mundo – o Pentacampeonato no Japão. Por que os ex-vira-latas ficaram a ver navios desde então? O que há de errado com esse pedigree?

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Talvez uma boa pista seja examinar o reverso da psicanálise rodrigueana. Sem nenhuma pretensão de pontificar, ou de suscetibilizar os especialistas, talvez o último triunfo da maior seleção de futebol do mundo tenha sido alcançado justamente pela falta do pedigree. Ou seja: o Brasil foi campeão mundial em 2002 como um vira-latas.

Ronaldo “Fenômeno” não só não estava em momento fenomenal, como se recuperava de uma cirurgia delicada no joelho e seu prognóstico para participação na Copa era duvidoso. Por outro lado, Romário, o herói do Tetra, ainda jogava em alto nível e tinha sido cortado de forma controversa na Copa anterior (por lesão que alguns achavam insuficiente para barrá-lo). A pressão pública era grande para que Romário estivesse na seleção de 2002.

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O alvo dessa pressão era Luís Felipe Scolari, o técnico rude que viera substituir a escola “científica” de Parreira/Zagallo. E o gaúcho Felipão não queria saber de Romário. Criou um grupo fechado de alta confiança que a imprensa batizou de “Família Scolari”: comando, humildade, sacrifício, lealdade. Estrelismos e condutas temperamentais estavam fora. O mundo podia cair na cabeça de Felipão que ele não chamaria Romário.

Até na então nova série da TV Globo “A grande família” o tema aparecia de forma hilariante. Para disfarçar um arranca-rabo de casal diante de um hóspede, Lineu alegava que Nenê estava furiosa com o clamor geral por Romário: “A Nenê acha que o Romário não tem mais espaço na seleção”, tentava disfarçar o personagem de Marco Nanini. Já o “Casseta & Planeta” satirizava o estilo bronco de Felipão chamando-o de “Pré-Scolari”. O caminho da seleção brasileira rumo ao Japão tinha de tudo, menos soberba.

Teimoso, Felipão cismou de esperar Ronaldo para comandar o seu ataque – e as imagens do atacante de muletas não muito longe do início da competição davam um ar surrealista àquela aposta. Às vésperas do início da competição, o técnico perdeu seu capitão – o volante Emerson se contundiu numa situação prosaica de um treino recreativo, no qual estava atuando como goleiro. Parecia mesmo um roteiro todo errado.

Para o lugar de Emerson, um jogador forte de contenção, foi chamado o pouco conhecido Kléberson, que não tinha a mesma força. Muito menos a mesma liderança. Kléberson trouxe ainda mais humildade a um grupo já voltado para esse valor, e trouxe leveza ao time em campo. Foi um dos destaques do Penta.

Ronaldo se recuperou a tempo de jogar a Copa – não como o “Fenômeno” imparável das grandes arrancadas, mas com uma versão, por assim dizer, minimalista da sua exuberância. Menos correria, toques cirúrgicos, passes precisos, arremates certeiros. Ronaldo foi Romário na Copa do Japão. Até gol de biquinho fez – uma das características do jogo econômico do Baixinho. E compôs uma dupla perfeita com Rivaldo, o Tímido. Nesse time de 2002 jamais seriam vistos jogadores ajeitando o penteado antes de entrar em campo, como passamos a ver depois.

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Tudo bem, os tempos mudaram. Mas já na Copa seguinte – em 2006, na Alemanha – era possível ver a ascensão da arrogância. As exigências de hotelaria dos jogadores eram mais visíveis que as notícias sobre o treinamento em si. De novo estava no ar a sensação enganosa de que a taça estava à nossa espera – era chegar e levar. Isso nunca deu certo.

Nesse time de 2002 jamais seriam vistos jogadores ajeitando o penteado antes de entrar em campo, como passamos a ver depois

E o clímax do erro se deu 12 anos após o Penta, quando o mesmo Felipão encarnou uma versão anti-Felipão: Copa do Mundo no Brasil, festa, oba-oba, a bola ia para dentro do gol só pelo empurrão da torcida – e ainda tinha um time estrelado com Neymar e cia para dar uma ajudinha. A austera Família Scolari de 2002 virou uma passarela de ungidos em 2014 – e consumou-se o maior vexame da história da seleção, surrada pela Alemanha por 7 a 1.

O Brasil tem muito a aprender com os “vira-latas” vitoriosos de 2002 – não só no futebol. Superar complexo de inferioridade é bom. Mas desenvolver complexo de superioridade não é nada bom. Quem desdenha da simplicidade já perdeu. A feira de afetações foi longe demais. Botem a bolinha no chão. Está cheio de falso pedigree por aí.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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