Como sabe o leitor, não estou entre aqueles que defendem a liberdade de expressão como algo absoluto, inquestionável e sem limites. Em outras ocasiões, aqui e em toda parte, já estabeleci o que considero ser o limitador para seu exercício numa democracia constitucional: a lei. Nessa estou com o filósofo liberal Karl Popper e seu “paradoxo da tolerância”. O pensamento livre não pode se confundir com a prática de crimes, muito menos anuir com a ação de inimigos da liberdade. Nos últimos tempos, golpistas e delinquentes de matizes diversos passaram a usar esse direito como licença poética para instigarem o golpe de Estado, a desconstituição dos Poderes e até mesmo pregar atos subversivos e de violência contra as forças institucionais de segurança.

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O caso envolvendo a ação do Ministério da Justiça contra o filme "Como se tornar o pior aluno da escola", do humorista Danilo Gentili, por outro lado, nada tem a ver com esse tipo de situação. Trata-se de censura pura e simples. O que temos é um órgão do governo tentando impor uma restrição a uma produção audiovisual cujo conteúdo considera inadequado. Quer proibir sua veiculação em canais de streaming sob a alegação de que faz apologia da pedofilia. É moralismo tosco misturado com obscurantismo intelectual e policiamento da atividade artística.

Nos últimos dias, a rede bolsonarista colocou para circular um trecho do filme em que o personagem interpretado pelo também humorista Fabio Porchat assedia sexualmente dois alunos instando-os a o masturbarem como forma de não serem prejudicados na escola que frequentam. Ainda que recortada deliberadamente para gerar repulsa no público e colocar um alvo na testa dos profissionais envolvidos, a cena evidencia a condenação dessa prática, que é rejeitada pelas crianças. Porchat, afinal, interpreta o vilão, que é retratado como uma figura dissimulada, abjeta, manipuladora e repulsiva (exatamente como são todos os pedófilos).

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O humor é a mais ferina forma de crítica. Se é bem ou mal executado, se é de bom ou mau gosto, aí fica ao critério do público, não dos burocratas de turno. O que o ministro Anderson Torres acha que é, afinal? Um fiscal dos bons costumes? Um profeta da sociedade virtuosa? Não serve para isso, muito menos para capitanear a pasta da Justiça. O despacho em que tenta tirar o filme do ar parece ter saído de uma repartição do DOPS, o órgão da ditadura militar que servia para regular o que era permitido publicar ou pensar.

Ainda que sua ação não prospere, e não me parece que os veículos notificados cumprirão essa ordem antidemocrática ou que ela seja mantida, há método nesse modus operandi. Tomar a coisa como apenas uma forma de desviar a atenção da alta dos combustíveis é subestimar o intento de uma mobilização que é de ordem ideológica e que obedece uma lógica eleitoral.

Nesses meses que antecedem a eleição presidencial, a pauta cultural voltará a predominar com força na estratégia governista. Torres foi apenas esteio operacional para um tema que apetece setores sociais fundamentalistas que estão na base do bolsonarismo e que constituem parte fundamental da militância que precisa ser permanentemente mobilizada. É aquela gente que busca a salvação do Ocidente, ainda que para isso precise censurar, ou se necessário, prestar vassalagem até mesmo para Vladimir Putin.