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Era 20 de janeiro de 1971, durante os anos de chumbo da ditadura militar, quando a casa do ex-deputado Rubens Paiva foi invadida no Rio de Janeiro por homens armados que se apresentavam como integrantes da Aeronáutica. O motivo da ação era uma “investigação” sobre suas supostas conexões com o guerrilheiro Carlos Lamarca. Paiva foi obrigado a deixar sua residência. Nunca mais foi visto. Dirigindo o próprio carro, foi conduzido até o quartel da III Zona Aérea. Ali foi interrogado, torturado e morto. Sua prisão foi negada pelo governo da época e uma farsa montada pelas autoridades para tentar justificar o desaparecimento. O atestado de óbito veio apenas depois da redemocratização, obtido graças a uma longa batalha burocrática e judicial movida por sua viúva, a advogada Eunice Paiva. A história ganhou as telas do cinema no filme “Ainda Estou Aqui”, um exercício de memória que serve como libelo pungente do diretor Walter Salles contra o autoritarismo.
Seria fácil um filme com essa temática descambar para o dramalhão, mas não é isso o que ocorre. Salles começa a obra retratando um Rio de Janeiro de cores vívidas, pontuando, de certa forma, o próprio ânimo da família Paiva. O perigo da repressão nunca é ausente, entretanto. Como um monstro à espreita ele vai aparecendo aos poucos. Primeiro como coadjuvante, até dominar a tela e fazer a narrativa mudar completamente de perspectiva, representada também na paleta de cores dos frames. O cenário que surge na tela a partir da prisão de Rubens Paiva vai mergulhando na escuridão até nunca mais voltar para as cores originais. Mesmo o epílogo não é colorido, mas cinza e pálido. E na mesma linha a história da família e o tom da interpretação dos atores.
Paiva é levado sem qualquer denúncia formal, sem direito de defesa e sem processo legal para um porão
Fernanda Torres ressalta a dignidade de Eunice Paiva, e não apenas na sua disposição de se insurgir contra o regime vigente, mas também na forma como guia os filhos após o desaparecimento do marido. Dentro do que é possível, ela busca preserva-los da dimensão do horror em que estão inseridos. Sua atuação é forte, mas autocontida. E o mesmo serve para descrever a caracterização de Selton Mello, sempre esbanjando carisma. A cena em que deixa sua residência e olha pela última vez para Eunice é gravada com cuidado, já que o ator não pode transparecer que sabe o destino de seu personagem. Ao contrário, precisa fazê-lo sob a perspectiva otimista do homem que imaginava que talvez pudesse reencontrar sua família.
O que vemos na tela não é proselitismo barato, mas uma denúncia contra um regime ditatorial. É a narrativa de como uma família feliz é destroçada pela ação policial do Estado. Paiva é levado sem qualquer denúncia formal, sem direito de defesa e sem processo legal para um porão. E para lá também acabam indo Eunice e sua filha, Eliana.
Que exista tanta gente resistente ou mesmo propondo boicote ao filme apenas atesta a degradação intelectual e moral das ideologias políticas no pais. Certa direita, saudosista dos militares, relativiza o ocorrido na ânsia de justificar o anticomunismo da época. Parte da esquerda, por sua vez, acha que o recorte segrega camadas sociais ao retratar apenas o que consideram o “drama da burguesia carioca”. Ainda que antagônicos, esses grupos se irmanam no desprezo pela democracia e na falta de qualquer empatia pelos dramas humanos vividos pelos personagens. “Ainda Estou Aqui” é um exercício de memória que deveria ser celebrado por qualquer um que realmente defenda a liberdade.
Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima