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Nem o lulopetista mais empedernido poderá negar que a vitória de Lula na eleição teve menos a ver com seus supostos méritos e mais com a colaboração involuntária do bolsonarismo, cuja passagem pelo poder deixou marcas profundas de incompetência, violência política, crise institucional permanente, flerte com a ruptura democrática e desumanidade com as centenas de milhares de vítimas da Covid. Esse caldo desastroso fez até históricos críticos e opositores do PT preferirem fazer o L a reeleger Jair Bolsonaro.
A massa de eleitores de centro, principalmente no Sul e no Sudeste, foi mudando de lado entre 2018 e 2022. E basta constatar o que ocorreu em cidades como São Paulo, onde o ex-presidente venceu em 2018 com mais de 60% dos votos e perdeu em 2022 com 49%. Nos quatro anos de seu mandato, Bolsonaro encolheu em regiões onde detinha considerável vantagem.
O papel ridículo a que Girão se prestou é um desserviço para uma pauta legítima e que tem o apoio da maior parte da população brasileira: a luta contra liberação do aborto.
Depois de ajudar a reabilitar o PT, o bolsonarismo parece disposto também a desmoralizar a ideia de oposição. O caso dessa semana envolvendo o senador Eduardo Girão é emblemático. Em meio a uma audiência pública com o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, o parlamentar do Novo tentou lhe entregar um feto de plástico. “Já que a gente entrou na questão da dignidade humana, vou materializar com a entrega dessa criança com 11 semanas de gestação”, disse se levantando da cadeira e indo até a mesa onde estava o integrante do Executivo. Almeida reagiu repudiando o que chamou de “performance”. “Eu vou pedir uma coisa, eu não quero receber isso por um motivo muito simples: eu vou ser pai agora (...) Em nome da minha filha, eu não vou receber. Isso é um escárnio”.
Se tivesse um mínimo de bom senso, Girão deixaria de lado a necessidade de alimentar o alarido de bolhas com recortes de seus momentos de lacração e evitaria o risco de abrir o flanco dessa forma. Como o governo Lula tem flexibilizado as restrições impostas ao aborto, o senador achou que bastaria fazer um teatro para constranger Almeida, um entusiasmado defensor da mudança na legislação. Mas o ministro é tudo, menos um parvo. E soube inverter a situação, produzindo um recorte a seu favor. Enquanto o ministro era aplaudido, o senador voltava para seu lugar em silêncio, numa cena que acabou viralizando imediatamente.
Girão, assim como outros bolsonaristas, é tão performático quanto despreparado. Aturdido pela resposta que recebeu, não conseguiu nem identificar que Almeida havia caído inadvertidamente em autocontradição. Ao recusar o feto de plástico em nome de sua filha que estava por nascer, o ministro dos Direitos Humanos acabou reconhecendo a existência de vida já no ventre materno. A pergunta óbvia seria se tal status se aplica de forma geral para a população ou se vale apenas quando há o desejo de se ter o bebê. Não pode haver dois juízos para a questão. Mas Girão nem deve ter se apercebido do óbvio lapso produzido pelo ministro.
O papel ridículo a que Girão se prestou é um desserviço para uma pauta legítima e que tem o apoio da maior parte da população brasileira: a luta contra liberação do aborto. O que ele fez foi transformar o ministro em vítima, fazendo dele o cavalheiro impoluto a tratar o adversário provocador e incivilizado com galhardia. O senador, por sua vez, apenas posou de bufão frustrado, fazendo da sua imagem uma caricatura que vai ser usada pela esquerda para descrever o comportamento de todos os que concordam com ele, mas que não necessariamente são adeptos de seus métodos.
A construção de um movimento político conservador legítimo foi sequestrada pelo bolsonarismo, que levou a abordagem de sua agenda ao extremo, o que contribuiu para se criar uma falsa percepção de razoabilidade na esquerda. E não apenas no debate sobre o aborto. A ideia de direito individual se converteu num atomismo antissocial sem responsabilidades, a defesa do direito de legítima defesa virou uma pregação de viés miliciano, a crítica ao estatismo virou o desmonte do setor público básico, a defesa do sistema de livre mercado virou um elitismo vultar, a oposição ao identitarismo militante virou licença para o exercício do preconceito, e a crítica às políticas econômicas do PT se converteu no medo do fantasma comunista pré-queda do Muro de Berlim. Para a alegria da esquerda no poder, a chamada oposição de direita virou um valhacouto aberrante, em que prudência foi trocada pela peruca loira de Nikolas Ferreira.