Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Guilherme Macalossi

Guilherme Macalossi

Opinião

A cloroquina é o bezerro de ouro da esperança alheia

Contaminado por coronavírus, Jair Bolsonaro caminhou até seus apoiadores que o aguardavam nos arreadores do Palácio da Alvorada. Fitou a multidão ansiosa e sacou do bolso uma caixa de cloroquina. Ergueu o remédio, para delírio geral dos presentes, que aplaudiram e saudaram de forma entusiasmada. O ato populista tinha clara plasticidade ecumênica. O presidente estava ali como um Aarão redivivo a mostrar seu novo bezerro de ouro, só que este talhado não com brincos e outros ornamentos, mas pela desinformação dos profetas das fake news.

Apesar dos avanços recentes no desenvolvimento de vacinas, num esforço farmacológico global sem precedentes, ainda não há tratamento adequado para essa doença que vem ceifando milhares de vidas e gerando o empobrecimento generalizado. No Brasil, em particular, o número vai se aproximando de 100 mil mortos e mais de 2 milhões e meio de contaminados. É exatamente nesse cenário de desalento e incerteza que prospera a exploração da esperança. Afinal, todos querem que o vírus vá embora e que a normalidade volte. E foi assim que a cloroquina acabou instrumentalizada, tornando-se a resposta fácil e errada para um problema grave e complexo.

De tal forma houve a politização do remédio que hoje os que apontam sua ineficácia como resposta ao coronavírus são tratados como torcedores da doença. Muito pelo contrário, afastar medicamentos inadequados é defender a saúde dos pacientes, uma vez que, além do risco de exposição, eles também podem ser acometidos dos efeitos colaterais do uso. E, como sabemos, a quase totalidade dos brasileiros não tem atendimento médico 24 horas nem a estrutura de saúde que está à disposição do presidente. Bolsonaro, por sua vez, faz exames cardíacos frequentes para monitorar a dosagem de cloroquina. As camadas populares as quais ele influencia com sua postura não têm a mesma sorte.

Mas de onde surgiu essa fixação pela cloroquina a ponto de o Ministério da Saúde ter formulado um protocolo para sua utilização e o Exército ter um estoque do remédio suficiente para 18 anos? A resposta é simples: do debate científico filtrado de forma apressada, rasteira e desonesta pelas redes sociais.

Começou com a divulgação de um estudo realizado na França que sugeria o uso de hidroxicloroquina combinado com azitromicina. Segundo as pesquisadoras Jéssica Nazareno e Mellanie Fontes Dutra, da Rede Análise Covid-19, a “ pesquisa contava com uma amostra de apenas 36 pacientes”, o que não é considerado representativo. Além disso, não seguia “critérios adequados de uma pesquisa científica, apresentando falhas metodológicas graves e não corrigíveis”.

Escrevem as autoras: “Para esse tipo de pesquisa ter validade científica, é necessário que os participantes sejam escolhidos de forma aleatória (randomizada) e dispostos em grupos equivalentes (controlada). Um dos grupos recebendo o medicamento e outro um placebo. No caso da pesquisa divulgada, o grupo usado como comparativo era de outra instituição e a idade dos participantes de cada um dos grupos eram diferentes, o que foi criticado pela comunidade científica”.

Mais recentemente, depois de constatadas as improcedências nos parâmetros usados, o estudo foi retirado do ar. Apesar disso, permaneceu o efeito de sua ampla divulgação, mesmo que já sobejamente refutado.

a exemplo desse, outros estudos também passaram a circular na internet mostrando a aparente eficácia do mesmo remédio. Dentre os mais famosos está um realizado em Detroid pela Henry Ford Covid-19 Task Force. Apesar da abrangência do número de pacientes analisados, trata-se de também de outro levantamento não randomizado e baseado em modelo observacional, o que é insuficiente para atestar a certeza do resultado.

Por outro lado, são muitas as publicações mais completas e recentes que demonstram que o uso de hidroxicloroquina é inócuo.

Segundo um estudo randomizado com pacientes não hospitalizados e em fase inicial da doença publicado no Annal of International Medicine, a hidroxicloroquina não demonstrou efeitos no covid-19. Além desses, vale destacar os estudos randomizados e relativos também a pacientes contaminados e em estágios iniciais, publicados no New England Journal of Medicine e no Clinical Infectious Diseases. Ambos chegaram à conclusão de que o medicamento não obteve resultados.

Em uma meta-análise publicada no Annal of International Medicine, Jéssica Nazareno e Mallanie Fontes Dutra apontam que “24 estudos clínicos randomizados publicados nos Annals of Internal Medicine apontam que as evidências são insuficientes e muitas vezes conflitantes sobre os benefícios e malefícios do uso da hidroxicloroquina ou cloroquina no tratamento do COVID-19”.

Ainda nesta semana, a prestigiada revista Nature publicou dois papers sobre hidroxicloroquina e seus efeitos no vírus. No primeiro, evidencia-se que o remédio não inibe a infecção em células pulmonares humanas, e, no segundo, que não faz efeito profilático em primatas.

Essas informações deveriam bastar para sepultar de uma vez a cloroquina como remédio para tratamento de coronavírus. Mas, como demonstra a atuação do Presidente da República, o que vale no Brasil são os símbolos narrativos que transformam pílulas em peças de propaganda. Com seu bezerro de ouro, Bolsonaro, o Aarão de coturno, desengana a nação em meio à peste descontrolada.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.