Contaminado por coronavírus, Jair Bolsonaro caminhou até seus apoiadores que o aguardavam nos arreadores do Palácio da Alvorada. Fitou a multidão ansiosa e sacou do bolso uma caixa de cloroquina. Ergueu o remédio, para delírio geral dos presentes, que aplaudiram e saudaram de forma entusiasmada. O ato populista tinha clara plasticidade ecumênica. O presidente estava ali como um Aarão redivivo a mostrar seu novo bezerro de ouro, só que este talhado não com brincos e outros ornamentos, mas pela desinformação dos profetas das fake news.
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Apesar dos avanços recentes no desenvolvimento de vacinas, num esforço farmacológico global sem precedentes, ainda não há tratamento adequado para essa doença que vem ceifando milhares de vidas e gerando o empobrecimento generalizado. No Brasil, em particular, o número vai se aproximando de 100 mil mortos e mais de 2 milhões e meio de contaminados. É exatamente nesse cenário de desalento e incerteza que prospera a exploração da esperança. Afinal, todos querem que o vírus vá embora e que a normalidade volte. E foi assim que a cloroquina acabou instrumentalizada, tornando-se a resposta fácil e errada para um problema grave e complexo.
De tal forma houve a politização do remédio que hoje os que apontam sua ineficácia como resposta ao coronavírus são tratados como torcedores da doença. Muito pelo contrário, afastar medicamentos inadequados é defender a saúde dos pacientes, uma vez que, além do risco de exposição, eles também podem ser acometidos dos efeitos colaterais do uso. E, como sabemos, a quase totalidade dos brasileiros não tem atendimento médico 24 horas nem a estrutura de saúde que está à disposição do presidente. Bolsonaro, por sua vez, faz exames cardíacos frequentes para monitorar a dosagem de cloroquina. As camadas populares as quais ele influencia com sua postura não têm a mesma sorte.
Mas de onde surgiu essa fixação pela cloroquina a ponto de o Ministério da Saúde ter formulado um protocolo para sua utilização e o Exército ter um estoque do remédio suficiente para 18 anos? A resposta é simples: do debate científico filtrado de forma apressada, rasteira e desonesta pelas redes sociais.
Começou com a divulgação de um estudo realizado na França que sugeria o uso de hidroxicloroquina combinado com azitromicina. Segundo as pesquisadoras Jéssica Nazareno e Mellanie Fontes Dutra, da Rede Análise Covid-19, a “ pesquisa contava com uma amostra de apenas 36 pacientes”, o que não é considerado representativo. Além disso, não seguia “critérios adequados de uma pesquisa científica, apresentando falhas metodológicas graves e não corrigíveis”.
Escrevem as autoras: “Para esse tipo de pesquisa ter validade científica, é necessário que os participantes sejam escolhidos de forma aleatória (randomizada) e dispostos em grupos equivalentes (controlada). Um dos grupos recebendo o medicamento e outro um placebo. No caso da pesquisa divulgada, o grupo usado como comparativo era de outra instituição e a idade dos participantes de cada um dos grupos eram diferentes, o que foi criticado pela comunidade científica”.
Mais recentemente, depois de constatadas as improcedências nos parâmetros usados, o estudo foi retirado do ar. Apesar disso, permaneceu o efeito de sua ampla divulgação, mesmo que já sobejamente refutado.
a exemplo desse, outros estudos também passaram a circular na internet mostrando a aparente eficácia do mesmo remédio. Dentre os mais famosos está um realizado em Detroid pela Henry Ford Covid-19 Task Force. Apesar da abrangência do número de pacientes analisados, trata-se de também de outro levantamento não randomizado e baseado em modelo observacional, o que é insuficiente para atestar a certeza do resultado.
Por outro lado, são muitas as publicações mais completas e recentes que demonstram que o uso de hidroxicloroquina é inócuo.
Segundo um estudo randomizado com pacientes não hospitalizados e em fase inicial da doença publicado no Annal of International Medicine, a hidroxicloroquina não demonstrou efeitos no covid-19. Além desses, vale destacar os estudos randomizados e relativos também a pacientes contaminados e em estágios iniciais, publicados no New England Journal of Medicine e no Clinical Infectious Diseases. Ambos chegaram à conclusão de que o medicamento não obteve resultados.
Em uma meta-análise publicada no Annal of International Medicine, Jéssica Nazareno e Mallanie Fontes Dutra apontam que “24 estudos clínicos randomizados publicados nos Annals of Internal Medicine apontam que as evidências são insuficientes e muitas vezes conflitantes sobre os benefícios e malefícios do uso da hidroxicloroquina ou cloroquina no tratamento do COVID-19”.
Ainda nesta semana, a prestigiada revista Nature publicou dois papers sobre hidroxicloroquina e seus efeitos no vírus. No primeiro, evidencia-se que o remédio não inibe a infecção em células pulmonares humanas, e, no segundo, que não faz efeito profilático em primatas.
Essas informações deveriam bastar para sepultar de uma vez a cloroquina como remédio para tratamento de coronavírus. Mas, como demonstra a atuação do Presidente da República, o que vale no Brasil são os símbolos narrativos que transformam pílulas em peças de propaganda. Com seu bezerro de ouro, Bolsonaro, o Aarão de coturno, desengana a nação em meio à peste descontrolada.
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