"Um dia memorável para a nação”, disse a primeira-dama Michele Bolsonaro na última segunda-feira (07/12). Exaltava a exposição de roupas oficiais da posse presidencial de seu marido. O evento, ocorrido no Palácio do Planalto contou com a presença do próprio mandatário e de ministros de Estado (todos muito ocupados), tendo transmissão pela TV pública para interesse de zero pessoas além daquelas presentes no recinto. No mesmo dia, o Brasil ultrapassava a marca de 177 mil vítimas da pandemia. A autoglorificação em meio ao agravamento da crise sanitária apenas revela o aspecto mais fútil da conduta deliberadamente omissa e negacionista com que o Governo Federal trata a pandemia. Enquanto o presidente estava absorto em questões de Estado envolvendo moda e estilo, João Doria informava a data de início da vacinação em massa em São Paulo: 25 de janeiro. Eis que, diante da notícia vinda do adversário político, o presidente se viu nu enquanto andava entre suas vestes.
Ao longo dos últimos meses, Bolsonaro e Doria fizeram movimentações distintas na área da saúde. O primeiro apostou tudo na imunização, firmando um acordo de tecnologia e pesquisa entre o Instituto Butantan e a empresa chinesa Sinovac Biontech. O presidente, por sua vez, até obteve um acordo entre a Fiocruz e a farmacêutica AstraZeneca, mas sua menina dos olhos sempre foi a cloroquina, remédio que chegou a oferecer até para as emas que habitam o palácio da Alvorada. O mais que desmoralizado “tratamento precoce”, seja com remédio para malária, vermífugo ou ozônio no reto, somado ao conjunto de declarações diminuindo a abrangência e a periculosidade da peste, deram a verdadeira tônica de sua abordagem para o problema.
Orientado pelo curandeirismo do mandatário, o Ministério da Saúde entrou em transe de gestão, com trocas de comando até a chegada de um general subserviente e cumpridor de ordens. Alguém que fizesse do presidente o ministro de fato. E foi nessa toada que o governo abriu mão do seu papel de coordenador dos esforços nacionais contra a doença, inclusive em relação à imunização. Ao invés de preparar o terreno para a chegada da vacina (que viria, mais cedo ou mais tarde), firmando múltiplos convênios, estabelecendo tratativas com fornecedores de insumos básicos, dialogando com Estados e Municípios para ações conjuntas, a única coisa que Bolsonaro se mobilizou em fazer foi espalhar conspiracionismo vulgar, instigando o medo e o receio da imunização.
A CoronaVac, do Instituto Butantan, foi alvo de uma sórdida campanha difamatória que incluiu até insinuações preconceituosas. No tocante ao presidente (para ficar com uma expressão de sua preferência), Bolsonaro a descartou, mesmo que eventualmente aprovada pela Anvisa. Depois chegou até a responsabiliza-la pela morte de um voluntário. “Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o Doria queria obrigar a todos os paulistanos tomá-la”, publicou em uma rede social. Arrematou a mensagem comemorando: “Mais uma que o Bolsonaro ganha”. Depois descobriu-se que se tratava de um suicídio. Como se não fosse suficiente, houve então quem especulasse se depressão profunda era efeito colateral da aplicação da vacina.
Estimulada pelo chefe, a infantaria bolsonarista no Congresso Nacional e nas redes sociais também desempenhou seu papel na disseminação da delinquência intelectual. A deputada Carla Zambelli e o deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança lançaram um projeto de lei visando impedir a imunização obrigatória por vacina não comprovada cientificamente. Como se alguma vacina não comprovada pudesse ser distribuída. Por sua vez, a deputada Bia Kicis divulgou informações falsas sobre a natureza das vacinas de RNA mensageiro. “Registre-se que as vacinas do convid-19 são experimentais e algumas inclusive trazem inovações desconhecidas em seres humanos como as vacinas NRA, que podem afetar o DNA”, escreveu. Desmentida por inúmeros especialistas da área, que mostraram que o RNA mensageiro não afeta o núcleo da célula e se degrada depois da utilização, ela preferiu deixar a mensagem, estimulando a desconfiança de que as pessoas estariam submetidas à alterações genéticas.
Se sobrou obscurantismo faltou o mínimo de planejamento. Na reunião dos governadores com o Ministério da Saúde não havia nada de concreto que a pasta pudesse apresentar, a não ser um genérico calendário de vacinação. Um governo de pipelines, como é sabido. A incompetência foi tão gritante que só agora começou o esforço para aquisição de seringas, agulhas e algodão. Há o temor, entretanto, de que faltem insumos no curto prazo pelo tempo que leva entre a encomenda de última hora e a entrega do produto. Na inoperância da União, outros governos estaduais e municipais passaram a recorrer a São Paulo.
Ao definir uma data para o início da vacinação em seu Estado, Doria obrigou Bolsonaro a tomar medidas concretas. A vacina da Pfizer, cuja utilização fora descartada em primeiro momento pelo Ministério da Saúde, agora passou a ser visada. Houve um avanço na negociação com o fornecedor para aquisição de 70 milhões de doses. A própria CoronaVac, antes rejeitada por ser de origem chinesa, passou a ser avaliada, para, por fim, também ter sua utilização admitida. Todas essas mudanças de posição em questão de 24 horas.
Mas que fique claro: tudo isso não é por um lapso de responsabilidade ou razoabilidade, e sim pela pressão pública por ações concretas. Farsantes, negacionistas e conspiracionistas, dentro ou fora do governo, podem espernear à vontade, o fato é que a vacinação se converteu em imperativo categórico.
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