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A Presidência da República é uma instituição que deveria ser exercida com decoro, parcimônia, temperança e responsabilidade. Quando o mandatário da nação fala, não o faz como um cidadão comum, mas como chefe do Poder Executivo. Suas palavras tem peso, advindo também da posição elevada que ocupa. Jair Bolsonaro, entretanto, vai na contramão. Como um militante vulgar, espalha narrativas, deforma os fatos e, muitas vezes, falta com a verdade de maneira a alimentar a extensa rede de desinformação que lhe dá suporte político. O faz com o único propósito de enfraquecer a democracia e suas instituições.
+ Ouça a coluna na voz de Guilherme Macalossi
Na última segunda-feira, falando para apoiadores, Bolsonaro apontou a existência de um suposto relatório do Tribunal de Contas da União que questionava as mortes por Covid-19 ao longo do ano de 2020. “Ali o relatório final, não é conclusivo, mas, em torno de 50% dos óbitos por Covid ano passado não foram por Covid, segundo o Tribunal de Contas da União”, afirmou. “Esse relatório saiu há alguns dias. Logicamente que a imprensa não vai divulgar”, completou, ao que foi respondido por uma anônima entre os presentes: “A gente divulga”. E divulga mesmo.
A declaração, como prometido pela referida militante, acabou sendo compartilhada incansavelmente no submundo da internet, tendo como pontas de lança os integrantes do núcleo duro do bolsonarismo e seus esbirros na mídia. No Twitter, o deputado Eduardo Bolsonaro publicou o vídeo de seu pai alertando para a “verdade chocante”. Já o deputado Carlos Jordy disse que aquilo não lhe surpreendia em nada. Como de praxe, Bia Kicis, que preside a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, também postou em sua conta oficial, destacando em letras maiúsculas que 50% das mortes não seriam por Covid.
O fato é que tal relatório jamais existiu. Seria grave o suficiente que um presidente da República fosse desmentido pela oposição ou pela imprensa, mas o caso de Jair Bolsonaro é ainda pior: ele foi desmentido pelo próprio órgão de Estado.
Em seu site, o TCU postou uma nota curta esclarecendo que não há “informações em relatórios do tribunal que apontem que ‘em torno de 50% dos óbitos por Covid no ano passado não foram por Covid’, conforme afirmação do Presidente Jair Bolsonaro divulgada hoje”. Nela também negou ser autor de um “documento que circula na imprensa e nas redes sociais intitulado ‘Da possível supernotificação de óbitos causados por Covid-19 no Brasil’”.
O print do documento atribuído ao TCU é uma falsificação grosseira do acórdão N° 2817/2020. No relatório verdadeiro não há nenhuma menção a supernotificação de casos. Muito pelo contrário, na página 90 o que se aponta é que não existem evidências de que tal prática estaria em curso no país.
A adulteração do relatório, que continua circulando na web e que foi compartilhada também por apoiadores do governo, viola os dispositivos do Código Penal. O Art 297 estabelece pena de reclusão de dois a seis anos e multa para quem “falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro”. Já o Art 299 estabelece pena de um cinco anos e multa para quem “omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante”.
É preciso que se apure quem forjou e quem mandou forjar o documento falso que serviu para que se difundisse uma mentira negacionista de altíssimo impacto social. Não estamos diante de um episódio banal ou menor da vida pública, e sim de um crime praticado para promover o esquecimento das vítimas da Covid.