Joe Biden até que tentou permanecer como candidato a reeleição, mesmo com a desastrosa participação no debate com Donald Trump na CNN. Mas tornou-se absolutamente inviável na medida em que as atenções se voltaram para sua saúde física e capacidade mental. O presidente americano, por sua vez, forneceu vasto conteúdo a ser explorado. Cada gafe, cada palavra perdida, cada troca de nome, cada pausa em busca de raciocínio, cada movimento vacilante virava imediatamente uma capa de jornal. O custo político só não era maior do que o humano, sustentado na base da pura arrogância pelo círculo íntimo do mandatário. E daí veio o atentado contra Trump e depois a infecção por Covid-19, que isolou Biden definitivamente e sepultou sua pretensão moribunda.
Dos escombros da candidatura de Biden, o que restou foi sua vice, Kamala Harris. Único nome possível para herdar os milhões doados para a campanha presidencial, ela já se impôs como substituta amealhando em poucas horas a maior parte dos delegados. Não foi uma escolha das bases do partido, mas de sua elite, que calculou os prejuízos de levar até a convenção uma disputa em aberto. Uma situação como essa apenas aprofundaria a divisão interna, na contramão dos republicanos, que se unificaram no apoio a Trump.
Excluindo toda espuma da publicidade voluntária e a torcida travestida de análise política, o que sobra de Kamala Harris é apenas uma figura comum que está servindo de muleta para um partido que não esconde o medo de perder
Vender Kamala não será fácil. Há enorme ceticismo em relação ao seu desempenho na função, seja como candidata, seja até como presidente. Uma pesquisa recente da POLITICO/Morning Consult mostra que apenas um terço do eleitorado acha que ela pode vencer a disputa para a Casa Branca. O descrédito também contamina os eleitores democratas credenciados. Apenas três em cada cinco acreditam em sua vitória.
O levantamento aponta que os indicadores de aprovação de Kamala Harris são tão ruins quanto o de Biden. Enquanto 52% a veem de forma desfavorável, 54% têm a mesma percepção do atual presidente. Ainda que Biden suma do noticiário (e isso será providenciado), ela terá de carregar seu legado nas costas. São quatro anos em que eclodiram conflitos no Leste Europeu e na Faixa de Gaza, além do desempenho econômico questionável da economia norte-americana o problema das fronteiras, que tem sua participação direta.
Considerando o contexto de desconfiança do eleitorado americano, um complicador adicional para a nova candidata democrata pode ser a percepção de distância dela com o público em geral. Ao contrário de Trump, que tem o apoio de seus correligionários e foi escolhido nas primárias, ela não apenas conserva indicadores periclitantes de popularidade como acabou sendo indicada pela conveniência dos caciques partidários. É uma candidata da burocracia em oposição a um concorrente que hegemonizou o Partido Republicano vindo de um movimento de base.
Além da vitalidade, o alicerce de Kamala Haris é o suporte que parte da imprensa alinhada ao Partido Democrata lhe dará nos EUA. Isso já é tangível e tende a se aprofundar nos próximos dias. Ainda que com todos os óbices, ela será descrita uniformemente com lisonjas, como se ela fosse a derradeira representante dos pais fundadores dos EUA. Uma líder capaz de rivalizar com os melhores quadros da história do país. Mas, excluindo toda espuma da publicidade voluntária e a torcida travestida de análise política, o que sobra é apenas uma figura comum que está servindo de muleta para um partido que não esconde o medo de perder.
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