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Guilherme Macalossi

Guilherme Macalossi

Flávio Dino, as urnas eletrônicas e a inelegibilidade de Bolsonaro

O ministro da Justiça, Flávio Dino. (Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado.)

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"Hoje em Recife vi a comprovação científica de que as urnas eletrônicas são extremamente inseguras e suscetíveis a fraude”. Essa frase poderia muito bem ter saído da boca de um bolsonarista, mas foi postada no Twitter por ninguém menos que Flávio Dino, hoje ministro da Justiça. O texto é de 2013, e foi recuperado pelo deputado Nikolas Ferreira (PL), que aproveitou para questionar: “Então quer dizer que o ministro da Justiça do Lula não somente questionou, mas afirmou que o resultado das urnas é facilmente alterado? O que será que o TSE acha disso?”. O parlamentar faz perguntas retóricas de maneira a acusar indiretamente a Corte de casuísmo ao cassar os direitos políticos de Jair Bolsonaro pela reunião com embaixadores em que o então mandatário atacou o sistema de votação.

A percepção inicial que se pode ter é a de que, por ser de esquerda e aliado de Lula, Dino estaria sendo poupado pela Justiça Eleitoral. Pelo menos é isso que estão fazendo os bolsonaristas, no esforço de tornar o ex-presidente em vítima de uma suposta perseguição política conduzida pelo TSE. Como se ele tivesse sido condenado não por ter dito o que disse, mas por ser quem é. Não passa de narrativa, ainda que as declarações da época feitas por Dino também sejam irresponsáveis, fraudulentas e inverossímeis. Dino deveria admitir que, ao dizer o que disse e escrever o que escreveu, contribuiu para engrossar o caldo conspiracionista que caiu no gosto dos bolsonaristas.

Não é o caso de diminuir a gravidade do que disse Dino em 2013, mas nem de longe suas falas tinham o peso, a abrangência e o impacto das falas de Bolsonaro em 2022.

Dito isso, é claro que existem diferenças objetivas entre os casos de Dino e de Bolsonaro, ainda que Nikolas Ferreira e outros afirmem se tratar da mesma coisa. Como o segredo de aborrecer é dizer tudo (para ficar com frase clássica de Voltaire), vamos a elas.

O direito, como se sabe, não é algo estanque. Sua interpretação, aplicação e até normatização (através da criação de novas leis), estão condicionados ao tempo, ao contexto político, econômico e social. Nem a Justiça americana, que tem uma tradição jurisprudencial relativamente estável, está totalmente livre disso. Que o diga a recente decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos que decidiu por anular o caso Rode contra Wade, reestabelecendo a autoridade estadual para definir se aborto é legal ou não. Desde 1973 o entendimento era diferente. As condições mudaram, entretanto, e com elas a interpretação da Constituição, que passou a ser vista de outro modo, para inconformidade dos ditos progressistas.

Não é o caso de diminuir a gravidade do que disse Dino em 2013, mas é fato que nem de longe suas falas à época tinham o peso, a abrangência, a dimensão e o impacto das falas de Bolsonaro em 2022. As redes sociais, afinal, ainda não tinham assumido o protagonismo que possuem hoje, nem as falas de Dino cumpriam, à época, a função de servir como combustível de um movimento coordenado de contestação da democracia e, por óbvio, de ruptura da própria ordem institucional.

Dino deveria admitir que, ao dizer o que disse e escrever o que escreveu, contribuiu para engrossar o caldo conspiracionista que caiu no gosto dos bolsonaristas.

Foi só a partir da popularização dos meios digitais que a visão jurídica sobre eles passou a ter outro status, tendo, nesse contexto, também o surgimento dos marcos regulatórios e da responsabilização sobre o discurso ali produzido (o que não pode ser interpretado como crime de opinião). Nessa toada, também houve a ampliação do que se entende como crime eleitoral e, mais do que isso, também do que vem a ser crime contra o Estado Democrático de Direito.

A punição a Bolsonaro não inaugurou essa nova perspectiva de interpretação e aplicação da lei, uma vez que havia o caso precedente do deputado Fernando Francischini, que foi cassado pelo TSE em 2021 depois de fazer uma live também com denúncias falsas contra o sistema de votação. Quando o então presidente reuniu embaixadores no Palácio da Alvorada para propagar desinformação, sabia muito bem o que poderia lhe acontecer. Ele mesmo criou as condições para que fosse dada sua inelegibilidade.

Outra diferença objetiva entre o caso de Dino e o de Bolsonaro é que o ex-presidente foi além dos questionamentos e acusações ao sistema de votação. Usou a estrutura da Presidência, do Itamaraty e o aparato estatal (inclusive uma TV pública) para promover a reunião com embaixadores e difundir seu discurso mentiroso. O Executivo foi instrumentalizado para promover a demonização da Justiça e também desferir ataques a adversários políticos, num ato com clara conotação eleitoreira. Ainda que Dino tenha dito um conjunto de absurdos, fato é que Bolsonaro cometeu claro abuso de poder político. Estamos a falar de quem ocupava o mais alto cargo da República, e, portanto, a quem também recaía a responsabilidade de zelar pela estabilidade da democracia não o de aviltá-la diante da comunidade internacional.

Até aqui, Dino não se pronunciou sobre suas postagens antigas. Ainda que publicadas uma década atrás, fato é que, dada a importância que ele alcançou no cenário nacional, por ter se tornado um severo crítico de Bolsonaro e do negacionismo eleitoral e pelo impacto e relevância social do tema, o mínimo seria um pronunciamento público fazendo mea culpa e repudiando o teor de suas acusações. Seu silêncio, ignorando o que não pode ser ignorando, contribui para que bolsonaristas continuem se refestelando. Sua conduta no passado, entretanto, não serve para justificar as acusações infundadas feitas por Bolsonaro no presente. Muito menos para achar que o discurso que leva a contestação da democracia deve ser tolerado para sempre apenas como liberdade de expressão, ainda mais quando, depois do 8 de janeiro, a tese da fraude nas urnas se materializou numa objetiva tentativa de golpe.

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