Em seu mais recente artigo publicado na sessão Tendências/Debates, do jornal Folha de São Paulo, Ives Gandra Martins propõe uma “reflexão desapaixonada e não ideológica” dos atos do dia 8 de janeiro em Brasília. Para ele, tudo não passou de uma ação “transloucada” e de um “gesto lamentável que nada beneficia a democracia”. Gandra Martins chama de lamentável o que na verdade é criminoso. Ele faz a escolha das palavras mais lhanas para tratar o ato antidemocrático de maneira a lhe tirar qualquer gravidade superior, inclusive rejeitando que tenha se tratado de uma tentativa de golpe.
Segundo o jurista, um “golpe de Estado se dá com armas”, e como os responsáveis pelos ataques estavam “desarmados”, então não há como descrever o que se passou de tal maneira. É uma simplificação grosseira que ignora o objetivo do grupo. A súcia que vandalizou a sede dos Três Poderes queria o caos de maneira a legitimar uma ação direta das Forças Armadas para repor a lei e a ordem. Eles seriam, portanto, o pretexto para o que chamam de “intervenção constitucional”, ato esse que se daria ao arrepio de qualquer parâmetro legal existente. E isso, com ou sem armas, numa analise desapaixonada, é golpismo.
Ao invés de rever sua posição original sobre o artigo 142, Gandra Martins a reafirmou, mesmo sob um contexto em que o presidente da República questionava o processo eleitoral.
O artigo de Gandra Martins é eivado daquela falsa modéstia típica de quem observa a discussão com menoscabo, como se o autor do texto fosse a fonte única de ponderação e equilíbrio. Mas ele não é. Até porque, trata-se do grande entusiasta da tese jurídica de que os militares seriam o ente moderador dos Três Poderes, e que a eles caberia a palavra final na República.
Quem poderá negar que a totalidade dos acampados na frente dos quartéis e o grupo que atacou o Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto desejavam a aplicação do Artigo 142 da Constituição como teorizado por Gandra Martins?
Ainda que ele possa negar que o dispositivo pudesse ser aplicado da forma como gostariam os agentes do caos do dia 8 de janeiro, o fato é que ideias têm consequências. E as suas – e aqui não disfarço a melancolia e decepção ao constatar –, deram fundamentação intelectual, ainda que eventualmente distorcidas, para uma ação que tinha como alvo a democracia em si. Mesmo a tal minuta encontrada na casa de Anderson Torres propondo um Estado de Defesa na sede do Tribunal Superior Eleitoral reservava às Forças Armadas o papel de usurpar as competências da corte e estabelecer ações arbitrárias violando o Estado de Direito de uma forma que apenas os Atos Institucionais da ditadura conseguiram.
Ao invés de rever sua posição original sobre o artigo 142, Gandra Martins a reafirmou, mesmo sob um contexto em que o presidente da República questionava o processo eleitoral, o governo aumentava a presença de militares na estrutura de poder e ameaças eram feitas a ministros do STF.
Alertei aqui na Gazeta do Povo, ainda em 2020, que “na atual condição do Brasil, que vê seu tecido social, político e institucional se decompondo em velocidade acelerada, a tese de Gandra Martins vale como parecer para a tomada de uma medida que poderia facilmente descambar para a exceção”. Intelectuais precisam de responsabilidade. E, diante do que se viu no 8 de janeiro, o mínimo que o bom doutor deveria fazer era um exame de consciência sobre como sua interpretação da lei ajudou a insuflar os bárbaros.
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