Antes de se analisar o mérito das declarações de Lula sobre a publicidade dos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal, é importante deixar claro que absolutamente nada mudará na sistemática de votação da Corte, que hoje é televisionada, comentada e tuitada em tempo real e aos quatro cantos, inclusive para prejuízo dela e do Poder Judiciário. A opinião do presidente sobre assunto, ainda que truncada, expressa somente isso e nada mais: uma opinião. Mas o que ele disse para gerar tamanha repercussão? Defendeu o sigilo do posicionamento dos magistrados. A reação foi imediata.
“Se eu pudesse dar um conselho, é o seguinte: a sociedade não tem que saber como é que vota um ministro da Suprema Corte. Sabe, eu acho que o cara tem que votar e ninguém precisa saber. Votou a maioria 5 a 4, 6 a 4, 3 a 2. Não precisa ninguém saber foi o Uchôa que votou, foi o Camilo que votou. Aí cada um que perde fica com raiva, cada um que ganha fica feliz”, disse em entrevista a Marcos Uchôa num canal do governo. Há quem esteja vendo nisso um “ataque à democracia”. Convém cuidar para não banalizar a expressão. Ataque à democracia seria o presidente da República dizer que não cumpriria decisões de magistrados, como fez certa feita um ex-presidente ao vociferar instigando a massa contra a Corte.
A TV Justiça foi se convertendo em um verdadeiro palanque, no qual os magistrados encontraram holofotes e fama para além do mundo do direito.
A fala de Lula não representa nem mesmo a intenção de apresentar qualquer projeto. Uma iniciativa assim, aliás, estaria condenada a não prosperar, seja no Congresso Nacional, seja no próprio STF, que já institucionalizou o rito da ampla divulgação dos votos por todos os meios possíveis. No improvável cenário de algo ser proposto pelo Executivo e aprovado pelo Legislativo, certamente cairia no Judiciário. Estamos a tratar, portanto, de uma polêmica sobre o nada.
Sobrerresta a visão do presidente sobre o tema. Ele, por exemplo, não detalha e nem dá forma a como um sistema alternativo funcionaria. Ainda que mal formulada, sua opinião apresenta uma crítica válida sobre no que se transformaram as sessões da Corte. Quem poderá negar, principalmente os críticos do STF, que há óbvia espetacularização dos votos dos ministros?
Criada em 2002 sob a presidência de Marco Aurélio Mello, a TV Justiça foi se convertendo em um verdadeiro palanque, no qual os magistrados encontraram holofotes e fama para além do mundo do direito. Ali, sob o olhar atento, primeiro da mídia e depois das redes sociais, eles se entusiasmaram com suas longas teses e perorações retóricas, cada qual a desfilar seu “notório saber” sobre todas as cousas. Não surpreende que isso logo se convertesse em pregação, e até mesmo em política.
É preciso um debate racional sobre até onde essa publicidade excessiva é boa para o funcionamento adequado da Corte. E, indo além disso, até mesmo sobre qual a margem de manifestação pública tem direito um ministro do STF, ou até mesmo membros do Judiciário e do Ministério Público. Toda essa gente fala demais, se expõe demais, e nada disso é adequado ou saudável institucionalmente. Ainda que não seja como Flávio Dino descreveu exatamente, o funcionamento da Suprema Corte dos Estados Unidos é infinitamente mais discreto.
É possível combater e restringir as teatralidades judiciais sem prejuízo da transparência, como comprovam outros países. A ligeireza de Lula em tratar de um assunto delicado e com nuances técnicas, entretanto, além de atrasar um debate necessário, apenas alimenta os que pretendem estabelecer falsas equivalências. Inclusive fornecendo o discurso da defesa da democracia a uns tipos que adorariam ver o STF fechado por um cabo e um soldado.
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