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Aquilo que se convencionou chamar de “liberalismo brasileiro” se revelou um ideário coxo, dilacerado pela falta de referências intelectuais sérias e caracterizado por um profundo desprezo pela ideia de institucionalidade. Não é, portanto, liberalismo no seu conceito absoluto. Quem ama o livre mercado na mesma medida em que odeia a democracia só circunscreve a liberdade a um capricho financista. Adam Smith e Alexis de Tocqueville virariam a cara para esses tipos, e, na certa, fossem nossos contemporâneos, seriam purgados na fogueira nada santa de nossos patriotas, sendo chamados de comunistas nas redes sociais.
Não surpreende, portanto, que Javier Milei tenha cativado tantos corações enlutados pela derrota eleitoral de Jair Bolsonaro em 2022. Algumas das mais notórias viúvas do ex-presidente brasileiro se mudaram para a Argentina durante a eleição no país. Foram lá fazer folguedos políticos e gritar palavrões em espanhol rudimentar. Outros até prometeram mudar de nacionalidade, convencidos que estão de que a prometida revolução que não se consumou por aqui vai dar certo por lá. E, por óbvio, mais do que as tais reformas econômicas (muitas delas necessárias, diga-se), o que desejam é que o novo mandatário meta o pé na porta da ordem legal.
Ao dinamitar a relação com o Legislativo e buscar enfraquecê-lo com a tomada de suas prerrogativas, Milei desmoraliza até mesmo o mérito de suas medidas.
Na última semana, Milei resolveu apostar na afronta aos demais poderes constituídos. Em rede nacional, ao lado de alguns de seus principais colaboradores, anunciou um decretaço com mais de 300 dispositivos visando desregulamentar a economia e alterar a legislação vigente. “Estamos em uma situação de emergência nacional, que requer a utilização de todos os recursos e ferramentas possíveis, como fizemos nessas três primeiras semanas de governo”, disse. Ainda que a justificativa seja plausível e correta, a forma ilustra sua disposição disruptiva e avessa ao diálogo.
Parte considerável das medidas são ilegais, uma vez que suspendem matérias que foram votadas pelo Legislativo. No direito, não pode um ato executivo alterar ou suspender o que foi decidido pelos representantes eleitos. É uma regra básica em qualquer democracia. Milei decidiu ignorar a Comissão Bicameral Permanente de Processo Legislativo, órgão que analisa decretos antes de estes serem apreciados pelo Congresso. Mais grave ainda, ele também quer poderes exclusivos por dois anos, prorrogáveis por mais dois. Está em um dos dispositivos do seu “Decreto de Necessidade e Urgência”.
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Ao Infobae, o advogado constitucionalista Daniel Sabsay, que apoiou Milei nas eleições, alertou para o risco institucional. “Se isso se concretizasse, estaríamos, na realidade, colocando nas mãos de uma única pessoa a soma do poder público, ou seja, o Congresso deixaria de existir, o fecharíamos”, escreveu. O economista Roberto Cachanosky, que também não é simpático ao peronismo, aponta que a sinalização do novo presidente argentino indica que ele quer “governar durante todo o seu mandato com o Congresso aberto, mas sem funcionar”.
Ao dinamitar a relação com o Legislativo e buscar enfraquecê-lo com a tomada de suas prerrogativas, Milei desmoraliza até mesmo o mérito de suas medidas. Nas democracias ocidentais, que são filhas do liberalismo político, o exercício do poder é compartilhado em equilíbrio, com a moderação de atores diversos e independentes. Desprezar essa dinâmica, ainda que em nome de um suposto progresso econômico a ser alcançado, é corromper um princípio elementar do ideário liberal. Aquele que lhe dá sustentação moral. Este não é o caminho da liberdade, é uma aberração na trilha do despotismo.