Qualquer democracia liberal divide claramente o papel atribuído aos militares e aos civis. Isso foi estabelecido por meio da experiência da própria humanidade, que, no curso da história, aprimorou seus regimes políticos, suas instituições e as suas leis. As Forças Armadas modernas tem como atribuição a garantia da segurança interna, a unidade nacional e a conservação do território. Já os civis determinam os caminhos da sociedade por meio dos poderes constituídos, dos partidos, das organizações sociais e da atividade econômica privada. Países em que a proteção militar foi pervertida como tutela militar, não demoraram a cair no arbítrio e no autoritarismo
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Em sua obra clássica “O Soldado e o Estado”, o filósofo conservador Samuel Huntington teoriza sobre a maximização do controle civil sobre as Forças Armadas. Segundo Huntington, é ela que leva à profissionalização da atividade militar. Já no livro “O Liberalismo e a Constituição de 1988”, que reúne textos de Rui Barbosa, o grande escritor, político, jurista e diplomata brasileiro escreve que, caso essa relação fosse inversa “os conflitos constitucionais não se resolveriam pela tribuna e pela toga, mas pela violência e pelas armas”. Segundo Barbosa, “dar às armas voto deliberativo é evidentemente abdicar nelas a soberania”.
Desde o início do governo Bolsonaro, a participação das Forças Armadas em assuntos eminentemente civis tem crescido preocupantemente. Nem mesmo durante a ditadura tantos militares estiveram investidos de cargos administrativos relevantes. Não bastasse isso, agora o presidente manifestou apoio à ideia de que militares façam a apuração paralela das eleições. A contagem dos votos não seria feita mais apenas nas sessões eleitorais e nos tribunais da Justiça Eleitoral, mas também na caserna nos quartéis.
Que se diga: as Forças Armadas já tem participação nas eleições. Elas constam na Resolução 23.673/2021 do TSE como instituições “legitimadas a participar das etapas do processo de fiscalização”, inclusive podendo acompanhar o desenvolvimento dos sistemas e programas de apuração, bem como ter acesso aos dados gerados. Além delas também participam órgãos civis e de Estado como o Ministério Público, a Polícia Federal, a Ordem dos Advogados do Brasil, dentre outros.
Que as Forças Armadas ajudem na fiscalização da eleição é uma coisa, outra é que elas concorram com uma instituição civil na execução da apuração dos votos. Afinal, é o TSE quem, além da competência e know how técnico, dispõe da legitimidade legal para fazê-lo. Dar esse poder aos militares é destituir a própria sociedade de controlar o processo democrático, e isso é completamente incompatível com um regime de liberdades públicas.
Na manifestação sobre apuração eleitoral dos militares, Bolsonaro voltou a mencionar uma suposta “sala secreta” na qual “meia dúzia de técnicos dizem ali no final quem ganhou”. Nada poderia ser mais falso. Inexiste tal sala. Os votos já são apurados nas urnas, cabendo ao TSE fazer a consolidação e totalização do resultado, que pode ser auferido a qualquer tempo. O presidente fomenta o receio da votação eletrônica jogando suspeição sem fazer nenhuma denúncia formal. Como não conseguiu fazer passar a lei do voto impresso, usa os militares para forçar a desmoralização do Judiciário. O que ele deseja é um sufrágio universal sob a mira de baionetas.
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