Não pretendo entrar no mérito da decisão prolatada pelo juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, magistrado responsável pelo caso Mari Ferrer. Se o que vai em sua sentença tem erro, então cabe ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina reformar. O advogado Julio Cesar F. da Fonseca, que representa parte acusadora, já entrou com o recurso pertinente. O processo agora segue em segredo de justiça e terá os devidos desdobramentos legais.
O que pretendo fazer, isso sim, é me debruçar sobre a forma distorcida como tudo foi repercutido a partir do “The Intercept Brasil”, e também tratar da postura do advogado do réu, que, para defender seu cliente, saiu atacando a vítima com um festival de vulgaridades e indecências intelectuais raras vezes vistas numa corte.
Em matéria assinada pela jornalista Schirlei Alves, o site "The Intercept Brasil" informa que André de Camargo Aranha foi considerado inocente por supostamente ter estuprado a jovem em uma festa ocorrida em 2018. E foi o que de fato aconteceu. O problema é que, depois de dar a informação correta (sobre a absolvição do réu), o texto conduz o leitor a impressões erradas usando a expressão “estupro culposo”, que não consta nem nas alegações do Ministério Público, tão pouco na sentença.
Diz o “The Intercept Brasil” no texto: “Segundo o promotor responsável pelo caso, não havia como o empresário saber, durante o ato sexual, que a jovem não estava em condições de consentir a relação, não existindo portanto intenção de estuprar – ou seja, uma espécie de ‘estupro culposo’. O juiz aceitou a argumentação.”
Como fica patente, e depois foi admitido pelo próprio site, o termo “estupro culposo” foi usado livremente para “resumir o caso e explicá-lo para o público leigo”. Bem, uma explicação precisa estar, antes de tudo, calcada no que de fato aconteceu. E não, não houve absolvição por “estupro culposo” (um tipo penal inexistente), e sim absolvição por falta de provas, o que é algo recorrente em todos os tipos de processos. O ônus da prova é sempre da acusação, e o “The Intercept Brasil” costuma lembrar disso quando trata das denúncias contra Lula. Vale para casos de corrupção, vale para casos de estupro. No processo, um ato criminoso só gera consequências se devidamente comprovado.
O problema do termo “estupro culposo” é que ele dá a entender que o estupro foi comprovado, mas que a punição foi descartada porque aparentemente foi sem intenção. Mas não foi o que ocorreu. O réu acabou inocentado porque o conjunto probatório apresentado foi aparentemente insuficiente para demonstrar que o crime de fato foi praticado. São situações muito diferentes. E foi na confusão entre elas que o debate público foi jogado.
Agora, se não ocorreu absolvição por “estupro culposo”, é possível dizer que o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho protagonizou um espetáculo de boçalidades. Mas como ele fez isso? Expondo imagens da garota publicadas em redes sociais. O que ele queria com elas? Dar a entender que ela buscava criar uma situação que poderia levar a um abuso? Na prática, com essa linha argumentativa, ele a responsabilizava pelo ocorrido.
Afinal, qual a relação que essas fotos publicadas na internet, mesmo que eróticas ou insinuantes, tem com um eventual crime de natureza sexual? O advogado, acaso, sugere que isso constituiria um convite ao estupro? Sabemos que não há de fato “estupro culposo”, mas existiria a categoria do “estupro por merecimento”? Então agora advogados de acusados por roubo estarão autorizados a responsabilizar vítimas por portarem seus bens ou expô-los em redes sociais, de modo a justificar a ação dos assaltantes? É puro relativismo moral. Nesse caso, misturado com baixarias proferidas contra a parte acusatória e sob os olhos vacilantes do juiz que presidia a sessão, que quase nada fez para conter as ofensas
Em dado momento, ao falar sobre as fotos, Mari Ferrer cobra que o advogado do réu se atenha aos fatos. Ele responde dizendo que graças a Deus não tinha uma filha do nível dela, e que pedia a Deus que seu filho não encontrasse uma mulher como ela.
Por óbvio, o advogado tem o dever de representar seu cliente da melhor forma possível, mas isso não significa licença para desrespeitar o acusador. Explorar a fragilidade do depoimento da vítima, buscando contradições, omissões ou inconsistências, é parte da estratégia de defesa, mas isso não inclui nem se confunde com trogloditismo retórico. Cláudio Gastão desbordou de sua prerrogativa, independente de a acusação contra seu cliente ser frágil ou não. Se a vítima mentiu sobre o estupro, então é na Justiça que ela pagará. E existem meios legais para tanto.
Casos de estupro são sempre delicados, e devem ser tratados com enorme cuidado, seja nas redações jornalísticas, seja nos tribunais. Um veículo não pode sair a inventar tipos penais para lacrar, nem podem as partes no processo confundir sistema acusatório com sistema humilhatório.
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