Eleito com mais de 344 mil votos, Deltan Dallagnol tem o direito de protestar e reivindicar politicamente o mandato que lhe foi cassado por decisão unânime do Tribunal Superior Eleitoral. Como político que é, foi o que fez. Após o resultado, foi ao saguão do Congresso Nacional e descreveu a sentença como um ato de vingança. A Corte aplicou, em sentido amplo, um dispositivo da Lei da Ficha Limpa que foi introduzido na Lei de Inelegibilidades. Os críticos da decisão apontam que Benedito Gonçalves, relator do caso, bem como os demais magistrados que o seguiram, fizeram um exercício de presunção ao entender que ele teria buscado desviar de possíveis processos administrativos ao pedir exoneração do Ministério Público Federal para poder concorrer ao Legislativo.
Para além do óbvio impacto político e da análise jurídica que prossegue (se o Tribunal fez ou não a aplicação devida da lei), há algo que parece continuar em segundo plano, mas que deveria ser discutido a fundo: as implicações deletérias que a referida legislação produz sob a justificativa de “moralizar a política”. Foi a partir de sua concepção que surgiu o germe da relativização do devido processo legal. E este cresceu a ponto de devorar um dos mais entusiasmados defensores de sua aplicação, ainda que sobrepese a dúvida se com a melhor ou mais adequada interpretação feita pelo TSE.
Como se pode antecipar uma sanção de direito se não há decisão alguma? Isso é uma violência absoluta ao mais básico direito fundamental: a presunção de inocência.
Independente da posição sobre o que se decidiu a respeito do mandato de Dallagnol, o fato é que a realidade jurídica, a partir da Ficha Limpa, foi moldada para ser mais estéril, ampliando a margem para o surgimento de sentenças arbitrárias. E é fácil demonstrar isso sem nem mesmo entrar no mérito da leitura feita pelo ministro Gonçalves. A alínea q do inciso I do Art 1° da LC 64/90, que foi usada para enquadrar o ex-procurador e ex-deputado, é uma aberração. Dispõe que são inelegíveis para qualquer cargo “os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos”.
É de se questionar, e os que militaram em favor da lei na época de sua apresentação não pareciam nem um pouco incomodados com isso, por que um processo disciplinar ainda inconcluso, e que, portanto, poderia se reverter também em absolvição, haveria de gerar uma inelegibilidade prévia? Como se pode antecipar uma sanção de direito se não há decisão alguma? Isso é uma violência absoluta ao mais básico direito fundamental: a presunção de inocência. Da forma como está posto, há uma presunção de culpa.
Imaginemos a hipótese de que todos os 15 procedimentos administrativos contra Dallagnol tivessem realmente se convertido em processos administrativos. Uma vez aplicada a alínea como está posta literalmente, impedindo o exercício do mandato, o que ocorreria se, no curso das investigações se concluísse que nada de irregular fora praticado? A antecipação da punição sem o devido processo legal e o amplo direito de defesa geraria um prejuízo insanável, inclusive de natureza reputatória.
Dallagnol dificilmente reaverá seu cargo, mesmo que Hamilton Mourão grite e esperneie por uma ação do Congresso Nacional. Ela não ocorrerá, até porque não tem base legal para tanto. Não cabe ao Legislativo sustar decisão judicial uma vez que não é instância jurídica. O recurso cabível é ao Supremo Tribunal Federal, goste-se ou não.
Só se surpreendeu com a decisão do TSE quem achava que uma lei flagrantemente aviltadora da legalidade produziria efeitos benéficos. Muito pelo contrário, se sucedem as iniquidades sem qualquer efeito ao combate à corrupção. O debate racional após a cassação de Dallagnol deveria ser para corrigir as distorções que a Lei da Ficha Limpa e outras medidas supostamente moralizantes geraram. Mas isso parece longe de acontecer, até porque ninguém que tenha a defendido na concepção parece disposto a refletir e fazer o mea culpa sobre o monstrengo que ajudou a parir.
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