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O Brasil precisará de muito tempo para se recuperar do luto pela perda de Silvio Santos. E ainda mais tempo para compreender na inteireza seu impacto social, midiático e cultural. De imediato, é possível dizer que, na despedida, ele foi capaz de unir um país cada vez mais dividido. Quantos seriam capazes de tal feito? E ainda mais gerando, como reação, uma onda de nostalgia genuinamente positiva em estratificações sociais das mais variadas, transpassando diferentes níveis de renda ou de escolaridade. Uma identificação universal poderosa que denota apenas uma das camadas que fazem do apresentador um personagem tão único e tão incomparável.
Como bem assinalou o humorista Tom Cavalcanti, Silvio Santos era muito imitado, mas, paradoxalmente, também inimitável. Uma coisa é copiar a voz, a risada ou mesmo os trejeitos. Outra, completamente diversa, é se projetar no imaginário coletivo de uma nação. Pela televisão, Silvio se fez presente na vida de milhões de pessoas e virou sinônimo do domingo em família. Seus muitos momentos antológicos foram vistos por pais, mães, filhos e avós ao mesmo tempo. Uma experiência coletiva que fazia dele íntimo das pessoas. Um parente e amigo indireto que visitava os lares dos brasileiros todos os finais de semana trazendo alegria e memórias afetivas.
Um parente e amigo indireto que visitava os lares dos brasileiros todos os finais de semana trazendo alegria e memórias afetivas
De certa forma, celebridades e artistas são tomados como inalcançáveis. Resultado da própria dinâmica da TV, que impõe a distância em relação ao público. Mas Silvio não era, definitivamente, um famoso qualquer. E não apenas por sua presença dominical. Sua própria história de vida propiciava as condições para uma identificação imediata com os telespectadores. O sujeito que veio do Brasil profundo, construindo uma fortuna tendo como ponto de partida o mais modesto comércio de rua. Ele era a personificação do self-made man, e também dos sonhos, das ambições e dos anseios de muitos. Era o povo na TV. Pela presença e trajetória, quebrou a quarta parede e estabeleceu uma relação direta com a população.
Desde o sábado (17), quando foi confirmada sua morte, umas poucas vozes dissonantes questionaram seu papel virtuoso na história recente do Brasil. Ainda que periféricas e pontuais, elas são o retrato de uma incompreensão do que é o país e de quem o representa de verdade. De muitas formas, Silvio Santos confrontava certa antropologia influente.
O frei Leonardo Boff, que foi escorraçado da Igreja Católica por fazer proselitismo marxista na sacristia, chegou a dizer que o gesto de Silvio Santos de distribuir dinheiro ao público tinha “pouco conteúdo de cidadania, de elogio a trabalho e de colaboração para realizar a justiça social”. Uma simplificação grosseira e intelectualmente desonesta que ignora a amplitude do trabalho social liderado por Silvio em múltiplas iniciativas, notadamente a do Teleton, direcionado para as crianças com necessidades especiais. Usando a estrutura de sua emissora, Silvio alavancou milhões em doações propiciando qualidade de vida para crianças que eram ignoradas pelas políticas públicas.
O ataque feito por Boff, na verdade, é fruto de um sentimento de inconformidade que ele e outros menos relevantes tem da dinâmica naturalmente capitalista da sociedade, que anseia por ascensão, consumo e lucro. Sentimentos esses que Silvio Santos não apenas tinha como seus, mas que identificava igualmente na multidão que o acompanhava. Os que tentaram lhe atacar a honra não o fizeram por pruridos morais, preciosismo ou acurácia histórica, mas por desprezarem esse país que não se enquadra nas doxas e nas fixações ideológicas. O ódio que manifestaram contra Silvio Santos é, na verdade, o ódio que nutrem pelo Brasil profundo.