A única política pública estabelecida por Jair Bolsonaro para contenção da pandemia consiste em uma enorme fraude: o chamado tratamento precoce. Ao longo dos últimos meses, o presidente desdenhou do uso de máscaras, estimulou aglomerações e espalhou mentiras sobre as vacinas. Entretanto, ele incentivou freneticamente o uso de cloroquina, azitromicina, ivermectina e hidroxicloroquina, que são úteis em outras situações, mas que, comprovadamente, não servem para o coranavírus. Esses remédios passaram a ser distribuídos pelo setor público e consumidos profilaticamente ou como tratamento para covid-19 por parte da população. Ao invés de botar dinheiro no Instituto Butantan para ajudar no desenvolvimento de um imunizante, o governo preferiu fazer o Exército aumentar sua produção de cloroquina, estocando pílulas suficientes para 18 anos de uso.
Pudera. Em 2016, o então deputado Bolsonaro defendia a fosfoetanolamina sintética, conhecida como “pílula do câncer”. Chegou a apresentar um projeto de lei liberando o medicamento para uso, mesmo sem aprovação pela Anvisa. O texto foi derrubado no Supremo Tribunal Federal. Como se constata pelo retrospecto, o ex-capitão sempre foi um entusiasta do curandeirismo. Por isso não surpreende que ele tenha se tornado o discípulo político número um de Didier Raoult, o médico francês que popularizou o uso da cloroquina ao adulterar a pesquisa que conduziu ao investigar a hipotética eficiência desse remédio.
Durante seu estudo, Didier escolheu os casos a dedo de forma a moldar o resultado para que ficasse de acordo com sua crença. O doutor foi denunciando pela Sociedade de Patologia Infecciosa de Língua Francesa e sua conduta está sendo investigada em seu país de origem.
Mesmo desmoralizado, Didier acabou adotado pelo bolsonarismo, que tratou de difundir sua tese pelo país. Uma espécie de cloroquinismo cultural. Apesar das principais entidades médicas e de saúde do Brasil e do mundo ressaltarem que não existe tratamento precoce, o governo continua insistindo na enganação. Semana passada, com a nova onda de coronavírus assolando o Norte, Bolsonaro despachou seu ministro da Saúde para que pressionasse os prefeitos da região a distribuírem o tal “Kit Covid”.
Apesar de o governo recomendar e distribuir esse conjunto de medicamentos, ele mesmo admite que não há prova nenhuma de eficácia. Foi elaborado um termo de ciência e consentimento em que o paciente se responsabiliza pelas possíveis consequências do uso de hidroxicloroquina/cloroquina em associação com azitromicina. Segundo o documento do Ministério da Saúde, “não há meta-análises de ensaios clínicos multicêntricos, controlados, cegos e randomizados que comprovem o benefício inequívoco dessas medicações para o tratamento da covid-19”. Também aponta para possíveis efeitos adversos como “redução dos glóbulos brancos, disfunção do fígado, disfunção cardíaca e arritmias”. O que está se fazendo manipular descaradamente a esperança das pessoas ao induzi-las a tomar remédios inúteis e jogar sobre elas as consequências de eventuais danos colaterais.
Como se não bastasse, o governo também lançou um aplicativo chamado “TrateCov”, com o objetivo de auxiliar médicos no diagnóstico da covid. A ferramenta era apresentada como um modo de orientar “opções terapêuticas disponíveis na literatura científica atualizada”. Ao preencher o formulário com descrições pessoais e informações de saúde, quase sempre a indicação era para a adoção do tratamento precoce. Eu mesmo resolvi testar a coisa.
Informei que estava com congestão nasal e sinusite. Meu diagnóstico foi covid-19 e tratamento com 6 comprimidos de Cloroquina (um a cada 12 horas por 5 dias), 12 comprimidos de Hidroxicloroquina (um a cada 12 horas por 5 dias), 4 comprimidos de Ivermectina (quatro comprimidos ao dia por 5 dias), 5 comprimidos de Azitromicina (1 comprimido ao dia por 5 dias), 10 comprimidos de Doxiciclina (1 a cada 12 horas por 5 dias) e 14 compridos de Sulfato de Zinco (1 a cada 12 horas por 7 dias). Outros que usaram o aplicativo para simulações relataram ter recebido a mesma recomendação, mesmo para quadros envolvendo bebês e pessoas cardíacas.
Pressionado, o Ministério da Saúde se viu forçado a desativar o aplicativo. Para justificar o ocorrido, a pasta informou que “o sistema foi invadido e ativado indevidamente” A culpa, portanto, seria de um hacker qualquer.
O Brasil não tem seringas e agulhas suficientes para a campanha de vacinação, enfrenta dificuldade para obter insumos no exterior e vê crescer o número de contaminações e mortes causadas pela pandemia. É o resultado de uma postura negacionista alicerçada no conspiracionismo de placebos intelectuais e na pilantragem de um médico disposto a usar a medicina para praticar estelionato. Eis porque somos hoje um case global de charlatanismo institucionalizado.