Ninguém pode negar que Javier Milei é um personagem curioso. A começar pelo penteado e as costeletas, bem como o costume de se fantasiar de herói de quadrinhos e de fazer caretas em fotografias. Mas não para por aí. Ele é também o sujeito que conseguiu misturar as ideias do economista austríaco Ludwing Von Mises com o espiritismo. Ultraliberal, o presidente eleito da Argentina já disse que se comunicava via intervenção mediúnica com seu cachorro de estimação morto. Foi o animal, chamado Conan, que o teria aconselhado a concorrer à Casa Rosada. Eis o candidato a que parte da direita brasileira resolveu bater bumbo. Não se sabe se também por recomendação psicografada de Conan.
A vitória de Milei é o produto de um contexto excepcionalmente trágico. Durante décadas, os argentinos foram sendo conduzidos pelo peronismo de crise em crise sempre em escala ascendente. É um país de instituições econômicas esfaceladas, em que o cidadão perdeu qualquer referencial de seriedade. Como ministro da Economia Sergio Massa, o candidato governista carregava nas costas uma inflação de 143%. Com que autoridade poderia garantir qualquer coisa, sendo o responsável imediato pela exorbitância dos preços e a desvalorização sem igual da moeda?
O sucesso de Milei depende de sua disposição em abandonar o personagem de milonga e assumir a função institucional.
Não surpreende, portanto, que o eleitor médio tenha votado maciçamente contra a casta política hegemônica, ainda que optando por alguém como Milei. A pergunta é: seria ele a resposta certa? A invocação de um ideário antiestatista é convincente e necessária, ainda mais tendo em vista a origem do problema econômico argentino. O país é culturalmente dirigista desde a década de 40, por conta da herança populista legada pelo ditador e caudilho Juan Domingos Perón. E isso, obviamente, ao mesmo tempo em que confere a Milei um alvo perfeito, também lhe impõe um desafio.
O presidente eleito da Argentina terá de lidar com castas poderosas e influentes, capazes de paralisar o país, num cenário semelhante ao da Inglaterra antes de Margareth Thatcher. E aqui fica o exemplo histórico: a Dama de Ferro foi bem sucedida porque enfrentou as uniões sindicais e as corporações com destemor, inteligência e, sobretudo, habilidade política.
Ainda é cedo para dizer se Milei racionalizará sua vitória ou não, mas tem dado indicativos de que a fase da campanha eleitoral acabou. Seus primeiros anúncios foram marcados por surpreendente pragmatismo. Dentre eles está a ex-candidata Patricia Bullrich, que deverá ocupar novamente o Ministério da Segurança, e Luis Caputo para a Economia, que foi ministro das Finanças de Mauricio Macri. Com isso, Milei articula a composição de seu governo para agregar setores mais influentes dentro do Congresso Nacional e na sociedade argentina. Só com apoio desses agentes é que conseguirá votar parte de sua agenda.
No campo internacional, Milei também já suavizou sua postura. O tom belicoso da campanha, em que atacava a China, com quem a Argentina faz swaps cambiais essenciais, e também provocava o governo brasileiro, prometendo inclusive rever as relações comerciais, deu espaço para mesuras. O argentino agradeceu publicamente uma carta de parabenização pela vitória eleitoral assinada pelo ditador chinês Xi Jinping e enviou sua futura chanceler a Brasília para convidar Lula para sua posse.
O histrionismo e os gritos de guerra podem até servir para ganhar votos e contentar bolhas fanatizadas na internet, mas é a velha prudência conservadora que ajuda fazer um bom governo. O sucesso de Milei depende de sua disposição em abandonar o personagem de milonga e assumir a função institucional, deixando as conversas psicografadas com o cachorro Conan para seu fã-clube de órfãos de Jair Bolsonaro.
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