Tudo o que se escuta em Porto Alegre são os helicópteros sobrevoando a cidade e o barulho de viaturas da Guarda Civil, do Corpo de Bombeiros e das Polícias Civil e Militar. Nas ruas, o fluxo de veículos contrasta pessoas tentando deixar a capital pelas poucas rotas disponíveis com veículos das Forças Armadas e reboques de voluntários transportando pequenos barcos e botes para serem usados no resgate de milhares de pessoas ainda ilhadas no teto de suas casas ou no alto de prédios atingidos pela cheia do Guaíba. Enquanto isso, o tecido social do Rio Grande do Sul se esgarça na medida em que o setor público é incapaz de oferecer uma solução ao caos crescente. A esperança, entretanto, se mantém nas pessoas.
Parte da região metropolitana da capital gaúcha virou terra de ninguém. Notadamente, os bairros ao norte de Porto Alegre e cidades com grande densidade populacional, como Canoas. Grupos criminosos passaram a atuar livremente na região. Os assaltos ocorrem em meio a resgates. De tal forma que essas operações passaram a ser escoltadas. Na outra ponta, na região próxima da cidade de Viamão, o congestionamento quilométrico e os carros parados produzem alvos fáceis para os delinquentes, que atuam em meio à penumbra dos blecautes.
O que está claro, em meio a todas as perdas e todo o sofrimento, é que o povo decidiu salvar a si mesmo.
Com a água isolando regiões urbanas inteiras e tirando de lá seus moradores, casas e condomínios ficam à mercê de saques e arrombamentos. Criminosos usam as redes sociais para fazer circular informações falsas sobre supostas ações da Defesa Civil, induzindo os que insistem em permanecer em seus lares ao risco de ações criminosas. A insegurança aumentou de tal forma que o governador Eduardo Leite requisitou o uso da Força Nacional. No X, antigo Twitter, o mandatário anunciou a chegada de 400 homens para reforço. Agora é necessário saber se serão suficientes.
Há inequívoca falência coletiva do aparato estatal em todos os níveis. E isso se constata na falta de qualquer plano de contingência, antes, durante e depois das chuvas torrenciais. E aqui com um agravante: havia ciência prévia da ocorrência continuada desses fenômenos meteorológicos, cada vez mais intensos e com janelas temporais cada vez mais curtas. Para se ter ideia, a referência de alagamento intenso em Porto Alegre datava de 1941. Agora a incidência se dá no período de meses. Não foi no século passado que o Vale do Taquari acabou devastado pelas cheias, mas em setembro de 2023.
Parte considerável do esforço de apoio consiste na mobilização de pessoas comuns, que se organizam de maneira espontânea e sem qualquer diretriz ou planejamento estratégico prévio das instâncias estatais. Jipeiros ajudam no transporte de voluntários e transitam por áreas que seriam inacessíveis sem veículos de grande porte. Entidades, grupos de amigos e pequenos empresários adquirem roupas, alimentos e auxiliam no amparo a resgatados. Moradores de outras regiões, principalmente de áreas litorâneas percorrem quilômetros de estradas entupidas de carros por caminhos indiretos para acessar a capital com suas embarcações e usá-los para tirar pessoas ilhadas em real situação de risco.
Em 1940, quando a Europa já estava tomada pelo nazismo, o exército britânico, confinado na cidade portuária de Dunkirk, só foi salvo da aniquilação porque o povo foi instado por Winston Churchill ao resgate de seus compatriotas do outro lado do canal da Mancha. 300 mil soldados foram retirados, numa manobra depois descrita pelo então premiê como um “milagre”. A exortação ao senso comunitário e o voluntarismo ante a ameaça coletiva sempre foram forças poderosas de integração dos povos.
Não há de ser diferente em um Rio Grande do Sul em cenário de guerra, ainda que a adversidade aqui seja de outra natureza. O que está claro, em meio a todas as perdas e todo o sofrimento, é que o povo decidiu salvar a si mesmo. E vai o fazendo, mesmo que sob o titubear de autoridades vacilantes e do ressoar estridente das sirenes e das tormentas.
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