É preciso ler com atenção o texto que Salim Mattar publicou no site Brazil Journal. Nele, o agora ex-secretário extraordinário de desestatização explica o motivo de ter debandado (para ficar com a expressão de Paulo Guedes) do governo. A razão de fundo o ministro da Economia já havia antecipado em uma colérica coletiva de imprensa: a venda de estatais não está andando. Mas por qual motivo? Mattar aponta vários culpados para isso, mas poupa Bolsonaro e a si mesmo.
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Até aqui, a prometida agenda de privatizações ficou na pura retórica, ilustrada por cifras trilionárias que só a imaginação permite inventar. Diante desse fracasso rotundo, nada melhor que sacar do bolso a desculpa preferida a que recorrem os apoiadores do presidente quando confrontados com sua ineficiência: o establishment estaria atrapalhando. Segundo Mattar, esse grupo composto por “empregados públicos, sindicatos, fornecedores, comunidades, políticos locais, partidos de esquerda e lideranças políticas têm sido uma barreira natural para a privatização”.
Tal complô até poderia ser verdadeiro, principalmente se considerarmos o passado recente do país, quando a esquerda, com o apoio entusiasmado do então deputado Bolsonaro (é bom lembrar), tentou inviabilizar não apenas as privatizações, mas também as reformas econômicas. Mas essa era outra época. Parte desses adversários hipotéticos não tem mais a força de outrora. Sindicatos e movimentos sociais estão em silêncio, partidos como PT, PCdoB e PDT não têm votos no Congresso (vide a aprovação da Reforma da Previdência), e a classe política não parece tão refratária quanto se supõe. Como lembra o jornalista Carlos Andreazza, “até aqui, o que foi ao Congresso passou”. Mas como culpar esses grupos se a parte que cabe ao governo, que é apresentar algo, não foi feita?
Vindo da iniciativa privada, Mattar deixa claro que não tinha muita ideia de como a coisa funcionava no setor público. Tanto que confessa até mesmo que a Secretaria de Desestatização tinha “atribuições, mas sem a autoridade para execução”, o que ele mesmo define como resultante da “falta de experiência” de quem escreveu o decreto que a criava. Não é uma graça?
O problema principal, entretanto, é que a convicção do governo nas privatizações é vacilante. Conta muito o fato de a ala militar, da qual o próprio presidente é um integrante, ser notoriamente estatista. O caso da TV Brasil é exemplar. Durante a eleição, Bolsonaro prometeu que a extinguiria. Uma vez no poder, passou usá-la para seus próprios propósitos.
Com o governo abrindo as torneiras, a demanda por incentivos estatais, o flerte com o desrespeito ao teto de gastos e o auxílio emergencial bombando entre os mais pobres, os desenvolvimentistas ganham força. E não apenas os fardados. Há outros, como Rogério Marinho. E eles têm uma visão de país muito diferente daquela defendida pela equipe do ministério da Economia. A pandemia criou condições para uma inflexão do governo em direção a uma posição que é muito mais próxima ao do histórico político do presidente, que começou sua carreira como representante de categoria. Com isso, o liberalismo vai sendo posto de lado e as privatizações e projetos como a Reforma Administrativa se tornam ainda mais difíceis.
Para efeitos gerais, hoje Paulo Guedes tem um papel meramente pirotécnico. Ele serve para dar verniz de austeridade ao que não passa de populismo com fins eleitorais. Afinal, para manter o apoio da Faria Lima e do mercado financeiro é preciso que alguém talentoso e conhecido saiba entretê-los com fábulas sobre a economia de mercado. Na live da última quinta-feira, o presidente pediu "um pouquinho de patriotismo" aos seus integrantes. O conceito de "mão invisível", cunhado por Adam Smith, vai dando espaço para o conceito de "mão verde-amarela", que fica mais ao gosto do bolsonarismo.
Ao ignorar deliberadamente esse contexto, que tem em Bolsonaro sua figura central, Mattar produz um artigo que vale mais como atestado de covardia intelectual. Pior: mesmo tolhido desde dentro do governo em suas iniciativas, ele deixa o cargo convicto de que ainda são os liberais quem dão as cartas. Cita que 14 empresas estatais estariam encaminhadas para privatização ainda em 2021. Tudo constataria em um pipeline que deixou prontinho para execução. Ele acredita nisso? Bem, há quem creia até em tratamento por ozônio.
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