Não há, por ora, o menor risco de Lula sofrer um processo de impeachment. Isso, entretanto, não significa que terá vida fácil no Congresso Nacional. Foi a escolha legítima das urnas. A maior parte da população votou em um presidente de esquerda e contrabalanceou isso elegendo também um Congresso Nacional conservador (não no sentido britânico, é claro). Por si, isso já seria suficiente para enfileirar desacertos, mas há também um contexto político infinitamente mais complexo daquele que o atual presidente encontrou quando assumiu seu primeiro mandato. Durante os 8 anos em que esteve no poder, Lula manejou a relação, inclusive pela cooptação descarada, mas, no Brasil de 2023, esse polo se inverteu. O protagonismo agora é do Parlamento, que, turbinado pelo orçamento secreto, acabou também se assenhorando do orçamento oficial.
Na última terça-feira (23), Arthur Lira manobrou para votar a regra fiscal antecipadamente. A aprovação veio com um resultado muito acima do necessário para tanto. Foram 372 votos favoráveis e 102 contrários. Apesar da comemoração e do alarido do lulopetismo, a palavra “vitória” só cabe aqui se considerarmos que sem o arcabouço, sobraria apenas a ingovernabilidade.
Só a esquerda mais estridente não foi avisada que o governo não teria condições de tocar uma agenda francamente progressista.
Dado o comportamento dos partidos políticos, nada ali permitia presumir o surgimento de uma base parlamentar sólida e fiel. Muito antes pelo contrário. O resultado se deveu à mobilização do Centrão e de setores da Câmara que não são governistas (motivados também pela liberação R$ 1 bilhão em emendas na véspera da apreciação do projeto). Partidos como PP e Republicanos entregaram quase que a totalidade de seus votos, e o PL um terço do total. Na esquerda, o PSOL foi até mais oposicionista que o partido de Jair Bolsonaro. Votou integralmente contra, indo na mesma linha que o Novo. Era evidente que esse cenário não se repetiria com facilidade. A agenda fiscal, é fato, transita por setores políticos não necessariamente alinhados ou subalternos ao PT.
Eis que, já no dia seguinte da aprovação do arcabouço, veio a tempestade. A Medida Provisória 1154/23, que reestrutura as funções dos Ministérios acabou sendo moldada para atender o interesse da força política majoritária na Câmara. A versão do relator, deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL), alterou o que Lula havia elaborado, desidratando o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério dos Povos Indígenas, gerando protestos da militância esquerdista e inconformidade em Marina Silva e Sônia Guajajara, as titulares das respectivas pastas.
A realidade se impõe, e ela não é simpática ao PT, ainda que seja o partido a ocupar o poder.
Conjuntamente a isso, durante a noite, quando da votação da urgência do Marco Temporal das Demarcações Indígenas, o governo liberou as bancadas da dita base para que votassem como bem entendessem (até porque não teria como exigir um posicionamento que não fosse favorável). A postura foi tomada pelas esquerdas como uma traição ao discurso ambiental e representativo dos povos originários, que Lula usou durante a campanha eleitoral para fustigar Jair Bolsonaro e capitalizar sua imagem no exterior.
As figuras de Marina Silva e Sônia Guajajara podem até render elogios em círculos de entidades internacionais, mas não votos dentro no Congresso de Arthur Lira. E Lula, como bom pragmático, sabe disso muito bem. A aprovação do Marco Temporal era de interesse dos deputados que defendem o agronegócio, é o grosso do centro político de comanda os rumos da Câmara e que, é necessário dizer, exercem influência no naco de governo que não está na órbita do lulopetismo.
Lula não desfruta mais dos índices de aprovação de outrora. Foi eleito com margem estreita e numa dinâmica institucional em que deputados e senadores já não se permitem controlar pelo Executivo, nem aceitam que temas já apreciados no Congresso sejam revistos. E a derrubada dos decretos presidenciais que alteravam o marco do saneamento são uma sinalização disso.
O Planalto está limitado pela circunstância, e a esquerda pela falta de capilaridade política. Num encontro da Fiesp, realizado na quinta (25), Lula tratou os reveses da semana com naturalidade, dizendo que fazem parte do jogo democrático. E fazem. Mas essa declaração não deixa de ser também a confissão de uma resignação crescente. A realidade se impõe, e ela não é simpática ao PT, ainda que seja o partido a ocupar o poder. Só a esquerda mais estridente não foi avisada de que o governo não teria condições de tocar uma agenda francamente progressista. Se o fizesse, Lula nem completaria o mandato.
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