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“Nós já tivemos uma experiência, no tempo da ditadura militar de mudar a composição da Suprema Corte. O Castelo Branco mudou. Mudou de 11 para 17. Depois ele tirou 5 que ele não gostava e ficou só os que ele queria. Não é prudente, não é democrático que um presidente da República quer ter os ministros da Suprema Corte como amigos. Você não indica um ministro da Suprema Corte para ele votar favorável a você ou te beneficiar. Os ministros da Suprema Corte têm que ter currículo, as pessoas tem que ter biografia.” As palavras são do então candidato Lula, no debate do 2° turno da TV Band. Estava corretíssimo.
Há de existir uma equidistância entre o presidente da República e seus indicados para o Supremo Tribunal Federal, ainda que seja do jogo que o nome escolhido por ele atenda um perfil ideológico ou tenha determinada leitura da lei. Uma vez presidente, Lula resolveu escolher para o cargo Cristiano Zanin, seu ex-advogado. Isso, portanto, tem a validade de um estelionato eleitoral, e o Senado faria bem em barrar a indicação.
Lula preferiu mandar às favas qualquer pudor ao indicar ao STF um ministro “terrivelmente amigo”.
A Constituição estabelece que o indicado ao Supremo Tribunal Federal precisa ter apenas notório saber jurídico e a reputação ilibada. O modelo foi copiado do sistema norte-americano, e estabelece critérios bastante amplos e subjetivos. O que é notório saber jurídico? E reputação ilibada? Será que o nome apontado por Lula se encaixa? Veremos.
Zanin é reconhecido por pares como um profissional qualificado, mas seu repertório bibliográfico é limitado. A obra mais relevante que publicou foi um livro sobre lawfare em parceria com os também advogados Rafael Valim e Valeska Teixeira Vanin. Também não tem grandes feitos curriculares. É claro que esse qualificativo não se limitada a diplomas ou certificações como mestrado e doutorado, mas ninguém poderá negar que seriam atributos, principalmente como compensação à falta de produção intelectual mais abrangente. E aqui importa apontar: ser um bom advogado não é ser jurista, muito menos significa ter uma visão ampla do que é direito ou do que é justiça. E é isso que se espera de um membro da mais alta Corte do país.
A nomeação ao STF não pode ser um honorário extra por serviço prestado, ou uma bonificação por resultado.
O que pensa Zanin pensa sobre descriminação das drogas? Sobre aborto? Sobre regulamentação das Big Techs? Sobre demarcação de terras indígenas? Esses são apenas alguns dos temas polêmicos e complexos que estão sob análise no Supremo Tribunal Federal. E não há a menor pista do que o ex-advogado de Lula pense sobre. A menos que se presuma que, por ser indicado por um presidente de esquerda, tenha alinhamento com visões progressistas. Mas aí seria adentrar no mundo da especulação.
Em sua primeira declaração sobre a escolha de Zanin, Lula afirmou: “Acho que todo mundo esperava que eu fosse indicar o Zanin, não só pelo papel que ele teve na minha defesa, mas simplesmente porque eu acho que o Zanin se transformará num grande ministro da Suprema Corte desse país”. As palavras fazem sentido. De “não só pelo papel que ele teve na minha defesa” se depreende que, apesar de não ser o único fator para a indicação, o fato de ter sido o representante jurídico de Lula contou para tanto. E isso já seria suficiente para que se enquadrasse como desvio de finalidade, além do óbvio fato de ferir o princípio da impessoalidade. A nomeação ao STF não pode, afinal, ser um honorário extra por serviço prestado, ou uma bonificação por resultado. Inadvertidamente, Lula confessa que está compensando Zanin por tê-lo representado em juízo.
Ainda que contra a reputação de Zanin nada de relevante conste, é claro que as falas de Lula contribuem para desmoralizá-lo, e também para lançar dúvidas razoáveis sobre o papel que ele prestará na Corte uma vez aprovado. Quem poderá negar a intimidade de ambos, ainda mais considerando o momento em que se deu a relação entre cliente e prestador de serviços? Artigos da Constituição não podem ser interpretados isoladamente. Há sempre de se ter sobre ela uma visão sistêmica, analisando os princípios que a norteiam. E se considerarmos a indicação do advogado sobre esse contexto, é claro que ela se torna incompatível e insustentável.
Em 2005, George W. Bush, então presidente americano, apontou para a Suprema Corte a advogada Harriet Miers, que tinha tido atuado no governo do Texas e também como conselheira da Casa Branca durante seu governo. Foi o suficiente para que democratas e republicanos, estes últimos correligionários de Bush, fizessem forte pressão contrária até que ela desistisse. Um ex-advogado de um presidente jamais seria admitido por lá. Mas não estamos nos Estados Unidos, e sim na terra do patronato. É por isso que Lula preferiu mandar às favas qualquer pudor ao indicar ao STF um ministro “terrivelmente amigo”.