Protesto contra a ditadura militar realizado em São Paulo, em 1968. Foto Arquivo/Agência Estado| Foto:

A propósito do polêmico documento descoberto por Matias Spektor, professor da FGV, que revela as execuções de presos políticos autorizadas por Ernesto Geisel (alguma surpresa?), Leonardo Sakamoto critica o que chama de “falta de maturidade para o debate político (…), típica de um país que ainda engatinha quanto à pluralidade do debate público e vive em meio à herança não-resolvida do seu próprio período autoritário”.

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Em resumo, Sakamoto ironiza a tendência de gente da direita a ironizar gente da esquerda quando o que está em questão são assassinatos políticos: sabemos que a esquerda não é exatamente ideologia que se cheire, em matéria de direitos humanos. Mas o cientista político não gosta muito que esse detalhe venha à tona.

O raciocínio (sic) é o seguinte: se a ditadura brasileira matou, mas ditaduras comunistas e socialistas também mataram, então ninguém pode falar nada a respeito sob risco de hipocrisia. Isso embute farsas argumentativas. Primeiro, quem se diz de esquerda não compactua necessariamente com o que governos que se dizem de esquerda fazem ou dizem. Esquerda e direita são campos extremamente plurais e a esquerda tem dificuldade até para chegar em um consenso na forma dar bom dia.

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Sakamoto está quase certo. De fato, não há ou não deveria haver senões quando se trata de violência de Estado, regime de exceção, execuções políticas, ditadura e totalitarismo. O problema é que a esquerda é, sempre foi, pródiga em senões, quando a encrenca é com ela.

Fernando Gabeira, figura insuspeita, confessou mais de uma vez: militantes de esquerda não queriam democracia, queriam ditadura do proletariado; lutavam por liberdades que não existiam (na prática) nos países que as inspiravam (na teoria); exigiam tolerância política, a mesma tolerância que nunca houve em países socialistas.

É evidente que um erro não desculpa o outro, e não há aqui um “mas” para contemporizar. Se o momento histórico era crítico, se havia perigo de tomada de poder por comunistas, a verdade é que a emenda saiu pior que o soneto.

Sobral Pinto, católico e conservador, advogado dos comunistas Luíz Carlos Prestes e Harry Berger, apoiou a solução militar no primeiro minuto, para, no minuto seguinte, retirar  com veemência seu apoio: percebeu que os militares não estavam dispostos a devolver o governo aos civis, e foi um dos bravos opositores ao regime.

Essa rejeição a todo e qualquer movimento autoritário do Estado não é mérito nenhum. É o bê-á-bá da vida política decente. Entretanto, nota-se na esquerda a tentativa de sempre tornar “supostos” os regimes socialistas, quando autoritários. Sakamoto não me deixa mentir. Faz a crítica à esquerda sempre com um “suposto” embutido; reparem:

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Primeiro, quem se diz de esquerda não compactua necessariamente com o que governos que se dizem de esquerda fazem ou dizem…”; “Governos que se autointitulavam socialistas ou comunistas mataram milhões. Do Khmer Vermelho, no Camboja, aos expurgos de Stalin, na União Soviética, passando pelos fuzilamentos na China ou em Cuba, a História é farta em registrar o que esses grupos fizeram em nome de suas revoluções ou da perpetuação de poder.”

Esse é o nó, a “herança mal resolvida” da consciência de esquerda: os crimes da direita são da direita; os crimes da esquerda são da suposta esquerda, dos regimes que se autointitulavam de esquerda. Sempre um asterisco, uma nota de rodapé, um não-é-bem-assim.

Fato é que o período militar é a chantagem histórica perfeita, usada e abusada no debate político por ideólogos de todas as cores e fetiches. Não que a ditadura tenha de ser esquecida nalgum porão da memória histórica; de porões, basta aqueles onde muita gente foi torturada e executada. A ditadura tem de ser lembrada com muito zelo.

O que ela não pode é se perpetuar como cala-boca político, toque de recolher retórico. Isso só interessa a gentinha autoritária, que sabe crescer em meio ao terrorismo eleitoral, de sabor vitimista-persecutório. Gentinha como Guilherme Boulos e Jair Bolsonaro, por exemplo, mais parecidos entre si do que seus entusiastas são capazes de perceber.