Pois é.
Fiz irônicos quarenta anos numa quarentena. Ontem, dia 06 deste abril que será o mais cruel dos meses por aqui. Não estamos na primavera, com suas agônicas raízes, mas o cenário é desolador.
Meses atrás eu bolava uma festa para comemorar o natalício. Sonhava com orgias, bebedeiras, comilanças, o último ato de uma vida de absoluta devassidão, depois do qual eu me despediria para sempre do pecado e, como Agostinho, tomaria juízo.
Festas me dão sono.
Estou casado e domesticado.
Não sou de beber em demasia.
Como pouco e sofro de indigestão.
Devassidão é coisa de gente brega.
Resultado: cancelei a festa meses antes. Os amigos que tinham se comprometido a vir, comprometeram-se a não vir. (Julgo importante registrar que ainda aceito os presentes ou quantia respectiva.)
Eis que minha preguiça seria premonitória. Nem que eu quisesse, poderia dar a festa que não dei. Agora quero. Minto, não quero, mas gostaria de poder querer.
Recebi os telefonemas, as felicitações, os votos de vida longa e feliz.
“Parabéns!”
“Felicidades”
“Lave as mãos!”
“Fique em casa!”
Não reclamo de ficar em casa (nem de lavar as mãos). É o que mais faço e gosto de fazer. Aliás, disseram que todo homem nasce platônico ou aristotélico. Eu digo que todo homem nasce parmenidiano ou heraclitiano. Ou gosta de permanecer, ou gosta de se movimentar.
Eu permaneço. Se puder, não saio à toa. Até porque sei que o mundo gira por conta própria, as pessoas giram com ele e, cedo ou tarde, chegarão até mim. Chegarei até elas. Tudo depende do ponto de vista do observador.
Mas, coisa engraçada, a interdição incomoda. Eu não faço questão de sair, de viajar, de andar a esmo, de visitar amigos, de comer fora, de me perder em multidões. No entanto, agora que não posso, apenas porque não posso, tenho vontade de sair, viajar, andar, visitar, comer, me perder.
Então percebo o quanto é boa a vida normal, cotidiana, tediosa. Êta vida besta. E maravilhosa por ser besta. A vida sem pestes, terrorismo, desastres econômicos. É bom quando não acontece nada, quando os dias escorrem lisos, quando a rotina empurra os ponteiros. Não sei se somos – ou o quanto somos – verdadeiramente livres, e não vou chatear o leitor com metafísica de folhetim, mas nossa liberdade depende muito de que as coisas não chamem muito a atenção.
Pestes, terrorismo, desastres econômicos e outras desgraças acontecem o tempo todo, na vida dos muitos que desconheço, dos tantos irmãos que vivem e sobrevivem distantes de mim. Muita gente nasce, cresce e morre sem um minuto de sossego; muita criança brinca em meio a ruínas, bombardeios, escassez, esgoto, solidão. Desejo a eles o tédio que hoje desejo a mim.
Ninguém tem certeza de como será o mundo depois de uma crise que, mais do que sanitária, é humanitária. Mas talvez seja uma oportunidade – moral e existencial – para alguns ajustes. Não precisamos de revoluções, de revoltas armadas, do fim do capitalismo, da ascensão do socialismo. Deus nos livre e guarde. Precisamos, isto sim, acordar de nosso sono dogmático. Olhar em volta, prestar atenção, valorizar a liberdade, saber compartilhar.
E, sobretudo, reconhecer que nada é tão extraordinário quanto um dia perfeitamente ordinário.
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