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Na semana em que o país lamenta milhares de mortos, os dois mais influentes líderes do Brasil contabilizam, cada um à sua maneira, o saldo político da tragédia sanitária. Bolsonaro faz piada com a cloroquina; Lula agradece à natureza por ter criado a covid-19. Em nenhum dos casos há dúvida quanto ao contexto.
Bolsonaro disse, rindo, “que a direita toma cloroquina, a esquerda toma tubaína”. Essa fala se junta às tantas outras que começaram ou terminaram em “gripezinha”, “frescura”, “e daí?”, “lamento”, “não faço milagres”, “brasileiro pula em esgoto e não acontece nada”.
Lula, por sua vez, argumentou que quando vê “essas pessoas acharem bonito que ‘tem que vender tudo o que é público’, que o ‘público não presta nada’, ainda bem que a natureza, contra a vontade da humanidade, criou esse monstro chamado coronavírus”.
“E daí?”
“Ainda bem!”
Bolsonaro tem apetite pela destruição. É um niilista. Aposta no caos, promove o caos, vive no caos. Lula é um canalha pragmático e programático. Tem visão de longo alcance. Sabe que o vírus faz mais oposição ao governo do que o petismo.
Que Bolsonaro e Lula, no mesmo dia, sobre o mesmo problema, tenham sido tão cínicos, não é coincidência. Isso remete à escolha, ao falso dilema, à chantagem moral das últimas eleições.
Desde o primeiro momento, dois blocos maciços de burrice e má-fé se coagularam. De um lado, o lulopetismo, que na figura invertebrada de Fernando Haddad se ancorava em Lula, prestes a ser preso; de outro, o antipetismo fanático, fim em si mesmo, que via no autoritário Bolsonaro o chavismo aceitável para fugir do chavismo inaceitável.
Os outros candidatos, à esquerda e à direita, não compreenderam o que acontecia. Demoraram a reagir e reagiram mal, encurralados entre dois populistas convictos. Era momento de propor algo que não fosse pura negatividade. Ser enfático numa agenda de conciliação. Manter-se firme na tentativa de pacificar. Nada feito.
Mas a culpa não é só de quem se candidatou e não soube fazer campanha. O distinto público tem responsabilidade, pois não quis saber de campanha que não fosse extrema. Mais do que uma jornada ruim de todos os outros, o brasileiro decidiu votar mal. Quis votar nos piores. O segundo turno serviu para confirmar o que já estava sugerido no primeiro: o gosto pela antipolítica, a profecia autorrealizada, o quebra-quebra de torcedor.
Bolsonaro é criatura de Lula? Não simplifiquemos as coisas. Há muito mais a ser considerado: a descoberta das ruas em 2013; a recessão que terminou em impeachment; a dinâmica fratricida das mídias sociais; a disseminação de notícias falsas; a farsa de Rodrigo Janot; a execução de Marielle; a facada de Adélio Bispo; a ação das milícias no Rio de Janeiro; a falência da segurança pública; o revanchismo mesquinho; o reacionarismo latente; a prisão de Lula; a criminalização da política como efeito colateral perverso da Lava Jato; a rejeição da esquerda a qualquer direita democrática; a rejeição da direita a qualquer esquerda democrática.
Esse ato falho – nem tão falho – do ex-presidente veio bem a calhar. É pedagógico. Serviu para lembrar que Lula não é, nunca foi, genuíno democrata ou humanista. Sempre foi autocrata e oportunista. O PT sabota a democracia objetivamente desde o Mensalão. Joaquim Barbosa, Fernando Gabeira, Eduardo Jorge, Marina Silva, Rui Falcão e até Ciro Gomes sabem do que se trata. O PT não inventou o aparelhamento, não inaugurou a corrupção, mas aprimorou tais práticas como projeto de partido e sistema de governo. O brasileiro votava em Lula, nos deputados e senadores, mas recebia ordens de Marcelo Odebrecht et caterva.
Temos de compreender isso de uma vez por todas para acordar da hipnose ideológica. Nossa inteligência cívica adoeceu. Bolsonaro quer desacreditar a direita democrática. Lula quer asfixiar a esquerda democrática. Nenhum deles é a resposta. Ambos são ótimas perguntas: que tipo de política, afinal, queremos para os próximos anos? O combate à corrupção é importante, mas não basta. O antipetismo é bom, mas insuficiente. O antibolsonarismo é inevitável, mas limitado. Não precisamos de Lula nem de Bolsonaro.
Precisamos de um novo consenso – não de uma nova política – que seja construído desde já. O respeito à Constituição como regra do jogo. O garantismo como filosofia subjacente ao ordenamento jurídico. A negociação reabilitada, feita de maneira legítima, e não como compra e venda de apoio nem transação de interesses familiares. A contenção dos poderes, a começar do Supremo Tribunal Federal, sem esquecer o Congresso. A rejeição categórica a todo e qualquer discurso autoritário, golpista, sabotador, que coíba ou dificulte a liberdade de imprensa e de expressão. O nojo a ditaduras: a brasileira, a chilena, a cubana, a soviética, a venezuelana. A responsabilidade com as contas públicas e a promoção do livre-mercado, sem descuidar do incontornável e justo amparo social. O respeito às religiões e ao sentimento religioso (e também aos não religiosos). A proteção dos bens culturais e do meio-ambiente. O investimento público e privado em saúde, educação, ciência e saneamento básico. O apreço inegociável à democracia no âmbito do Estado de direito, em que maiorias e minorias, comunidade e indivíduo, vivam e participem da pólis sem ameaças ou extorsões.
O resto é chantagem.