De repente, um esquisito fenômeno editorial chama a atenção: livros e mais livros que no título, no subtítulo, na capa e na contracapa prometem uma defesa apaixonada do foda-se. Pois é, velho conhecido.
Foda-se isso, foda-se aquilo. Foda-se o otimismo, o pessimismo, as boas maneiras, o sentimento de culpa, a ausência de culpa. Foda-se o vizinho, o padre, o marido, o patrão, a vergonha. Foda-se o sexo, a falta de sexo. Foda-se o que porventura tiver de se foder, para que a minha vida (no caso, a do leitor) seja mais divertida. Foda-se, mas seja foda.
Se compreendi as intenções desse novo gênero subliterário, a ideia é oferecer um viradinho de autoajuda requentado com o sal de estoicismo barato, para consumo rápido, por estômagos incultos. Como se o aprendizado de certa indiferença diante dos contratempos nos fizesse mais robustos, corajosos, atentos e espertos. Eu ligo o foda-se e... foda-se.
Mas também há outra coisa. Essa espécie de interjeição moral que é o foda-se verbaliza o desdém a quaisquer considerações ponderadas, motivações refletidas, elaborações sofisticadas que um estraga-prazeres vier a objetar. Quem diz foda-se, diz que já não se importa, que quer ver o pau comer, que está às tintas para o julgamento alheio.
Nas manifestações do último dia 15, essa disposição de espírito virou engajamento coletivo. Mais do que apoio ao presidente, o mote era confrontar aqueles que não apoiam o presidente. O eleitor que não votou nele, os poderes constitucionais que a ele não se submetem, a imprensa que não faz o papel de relações-públicas, os intelectuais que não se convertem à mesma fé.
Em meio às placas verde-amarelas e às camisetas estampadas com a efígie presidencial, muitas pessoas carregavam, gritavam, rimavam o grito de guerra: “Foda-se!”
Enquanto dezenas de países do mundo civilizado tomam medidas drásticas para retardar o contágio de uma doença para a qual não temos vacina, anticorpos ou leitos hospitalares, no Brasil, esse país que se orgulha de ser engraçadinho e despreocupado, parte da população acha oportuno dizer sim ao sim, protestar a favor do status quo, não sem antes deixar claro que medidas sanitárias e recomendações científicas devem ser respondidas com um solene, enfático, indivisível foda-se.
Reparem que os manifestantes saíram às ruas não apesar do coronavírus, como se estivessem temerosos do contágio, mas cumprissem, heroicos, com o sacrifício do próprio sangue, o dever cívico de defender o presidente. Nada disso.
Os manifestantes saíram às ruas deliberadamente com o foda-se na boca e com o espírito do quero que se dane, do quanto pior melhor, do desgraça pouca é bobagem. Que o país todo acorde infectado, que os leitos escasseiem, que os velhos rejuvenesçam, porque se tutto è burla nel mondo, ou pelo menos no Brasil, então eles querem mais é que se foda.
É foda.
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