por Gilberto Morbach
Ainda neste mês, em ensaio para a Ilustríssima, o economista Pérsio Arida defendeu aquilo a que chamou de uma “PEC do enxugamento” — uma proposta “que suprimisse dispositivos sobre a forma de implementação de políticas públicas e os transformasse em leis complementares”. Adotada sua proposta, a Constituição Federal não mais traria (i) vinculações de impostos a gastos, (ii) gastos e parâmetros para gastos com referências fixa (e.g. salário mínimo, idade para aposentadoria), (iii) regras fiscais (e.g. limite de gastos públicos, “regra de ouro” orçamentária) e, finalmente, (iv) isenções tributárias.
O argumento principal que sustenta a tese de Arida é derivado exatamente das características que definem nossa Constituição: extensa, minuciosa e, em suas palavras, “em constante expansão”. É inegável: a Carta Magna brasileira é, realmente, formal e analítica. E, como Pérsio Arida, penso que ela é mesmo demasiadamente formal e analítica.
Esse é o aspecto no qual acompanho o ponto de um dos pais do Real, e assim o faço porque, igualmente, acompanho aquilo que foi brilhantemente articulado por Lon Fuller, nas páginas da Harvard Law Review, ainda em 1958.[1] Fuller diz que, muito comumente, as constituições do período pós-Segunda Guerra Mundial “incorporam uma série de medidas políticas e econômicas de um tipo que seria ordinariamente associado à lei estatutária”. Mais interessante, aqui, é a suspeita do autor sobre o que engendra essa característica no constitucionalismo mundial após 1945:
É muito pouco provável que essas medidas tenham sido escritas nas constituições por representaram objetivos amplamente compartilhados. É possível suspeitar que a razão por trás dessa inclusão é precisamente o oposto: o receio de que elas poderiam não sobreviver às vicissitudes do exercício ordinário do poder parlamentar. Assim, as divisões de opinião que são inerentes ao processo legislativo são escritas no documento que torna a própria lei possível.
E ainda mais interessante aqui são as considerações sobre o grande risco subjacente a esse fenômeno típico do neoconstitucionalismo.[2] De acordo com Fuller, essa “constitucionalização excessiva” — retomando aqui a definição de Pérsio Arida — representa “sérios perigos para uma futura realização do ideal de fidelidade ao direito”.
Esse é o ponto fundamental. No limite, a sacralização de medidas de cunho político-econômico na lei fundamental representa a busca por uma garantia de decisões políticas que talvez não seriam tomadas se discutidas na esfera de deliberação típica dos procedimentos e processos legislativos. O problema é que um consenso imposto, e não sobreposto,[3] representa um grande risco ao ideal de fidelidade à lei. Quando, a isso, se soma a exigência constitucional de metas talvez irrealizáveis dadas as circunstâncias do presente, o respeito ao império da lei está em perigo ainda maior. Daí por que, de certa forma e em alguma medida, concordo com Pérsio Arida.
Mas, de certa forma e em alguma medida, discordo de Pérsio Arida, e assim o faço exatamente pelas circunstâncias do presente — as mesmas que talvez tornem certas normas constitucionais irrealizáveis. O que quero dizer é que, em abstrato, o ponto é excelente e de grande importância para a teoria do direito. Em abstrato, e o direito nunca opera no abstrato. O que quero dizer é que, se o ensaio é ótimo, o timing é péssimo.
Verdade, o que temos hoje é um “lentíssimo processo de reformas” e uma Constituição que, além de regular para muito além de “temas que são propriamente constitucionais”, “não para de crescer”. São essas, como eu mesmo admiti e falei, as circunstâncias de nosso presente. Mas as circunstâncias de nosso presente, nesta era do imprevisto,[4] apresentam-se no governo de Jair Bolsonaro (o conservador que nunca foi, que quer “quebrar o sistema” e “mudar tudo isso que tá aí”) e Paulo Guedes (o ultraliberal pela metade, para quem a ditadura de Pinochet era “irrelevante do ponto de vista intelectual”).[5]
Como bem disse Monica de Bolle, ainda ontem (20/12) para a Época,
Como defender um fiscalismo qualquer em nome do “liberalismo” sem tratar das consequências que essas medidas podem ter no aprofundamento da desigualdade? Como ter a ousadia de falar em “volta da confiança com as reformas para retomar o crescimento” quando há dezenas de milhões de desempregados e subempregados no país? Sem contar, é claro, que só fizemos uma reforma nestes quase 12 meses de governo. Como dar tanta atenção ao mercado quando estamos perdendo mais uma geração para o analfabetismo funcional em matemática, ciências e, claro, leitura? Como deixar escorrer pelas costas de uma sociedade multiétnica as persistentes discriminações de gênero, de raça, de classe social?
É exatamente nesse sentido que pergunto: como criticar a “constitucionalização excessiva”, como defender uma “PEC do enxugamento”, justamente quando lideranças políticas falam em AI-5? Quando o espírito do tempo[6] é o de absoluta despreocupação com os direitos mais básicos?
Pérsio Arida tem razão quando escreve o que escreve, quando diz o que diz. Mas não tem razão quanto traz o ensaio certo na hora (mais) errada (possível). De fato, a Constituição Federal tem muitos (muitos) problemas. Mas como sustentar que ela “prende o país ao passado” quando as lideranças do país querem justamente um retorno ao passado? Quando o conservadorismo é degradado a um reacionarismo que, nem sequer imobilista, representa um apego a um passado que nunca existiu?
As coisas precisam ser ditas. Em seu tempo, porque o tempo importa. E estamos no tempo no qual aqueles que devem garantir o respeito à lei são os primeiros a desrespeitarem-na, sem qualquer preocupação com a impessoalidade, a dignidade, sem observar princípios mínimos — princípios jurídicos, princípios constitucionais, princípios morais, princípios de decência e de sanidade. Isso, sim, representa “sérios perigos para uma futura realização do ideal de fidelidade ao direito”; perigos muito maiores do que aqueles trazidos pelas constituições do pós-guerra.
[1] Todas as citações e referências a esse texto, neste ensaio, estão em Fuller, Lon. “Positivism and Fidelity to Law: A Reply to Professor Hart”. Harvard Law Review, vol. 71, n. 04, 1958. Os grifos são meus.
[2] É importante ver, nesse sentido, as considerações do Professor Lenio Streck sobre o neoconstitucionalismo. Destaco, especialmente, o verbete “Neoconstitucionalismo” em seu Dicionário de Hermenêutica. Ainda no Brasil, é importante também fazer referência aos estudos de Otavio Luiz Rodrigues Junior acerca da autonomia epistemológica essencial do direito privado (particularmente, ver Direito Civil Contemporâneo - Estatuto Epistemológico, Constituição e Direitos Fundamentais).
[3] Devo a ideia dos termos rawlsianos aqui empregados à Prof. Andrea Faggion, que os adota em excelente ensaio sobre as mesmas considerações de Lon Fuller.
[4] Impossível não recomendar o excelente A Era do Imprevisto, de Sergio Abranches.
[5] A frase é do próprio Guedes, declarada em seu perfil traçado por Malu Gaspar e publicado pela revista piauí.
[6] Como tão bem tem insistido Carlos Andreazza.