Morreu Harold Bloom, aos 89 anos.
E, infelizmente, talvez tenha morrido com ele o último suspiro da crítica literária engajada – esteticamente engajada, diga-se. Mais do que uma teoria, para além de um conjunto de princípios, foi-se embora um elã.
Bloom descreveu e denunciou, antes de todos, as mistificações nos departamentos de letras que, envergonhados da própria vocação, por muitos considerada elitista e demasiado “ocidental”, aos poucos se transformaram em sucursais das reivindicações de classe, grupos ou gênero.
Negou a predominância de critérios étnicos, antropológicos e políticos na análise do objeto literário. Inteligente, sabia que a obra não começa nem termina em si mesma, mas também que um romance não é crônica histórica, um poema não é panfleto ideológico. Acreditava na autonomia – não no autismo – da arte literária.
Por essas razões e algumas outras, foi amado e detestado em igual medida. Para muitos, não passava de um preconceituoso; para outros, um saudosista. Reducionismos que não davam conta da vasta obra que produziu incansavelmente, com paixão de verdadeiro criador.
Harold Bloom lia com voracidade e destacava nos poemas, nos contos, nos romances e nas peças o fenômeno propriamente estético e, por que não?, metafísico que neles estava latente ou explícito. Interessado em cabala e gnosticismo (Jesus e Javé; Anjos Caídos), a seu modo trouxe de volta a mística e a religião ao ambiente árido da academia (e de fora dela).
Rejeitava as facilidades da literatura pop e desprezava as adaptações de clássicos (Contos e Poemas para Crianças Extremamente Inteligentes...), com a mesma fúria com que afirmava a prevalência de um cânone (O Cânone Ocidental; O Cânone Americano); de uma criteriologia (Como e Por Que Ler; A Anatomia da Influência); de uma concepção romântica da genialidade (Gênio). Defendia tudo o que não é de bom-tom defender nestes nossos tempos em que os sentimentos paroquiais e as genuflexões profissionais têm de vir antes, durante e depois do mérito literário.
Ele não estava nem aí.
Em seu livro mais controverso, A Angústia da Influência, arrisca uma teoria literária original, influenciada por Freud e Nietzsche, que é uma espécie de antropofagia literária. Rendeu e ainda rende discussões intermináveis. Mas o polêmico americano foi além.
Apaixonado por William Shakespeare, publicou aquele que é, dentre seus livros, o meu preferido: Skakespeare, a Invenção do Humano, obra tão ambiciosa quanto sua obsessão pelo bardo inglês. Num estudo peça a peça, com minúcia de entomologista, a inusitada tese é a seguinte: Shakespeare inventou a sensibilidade moderna. Inventou o humano.
Antes dele, sentíamos o que sentíamos, sofríamos o que sofríamos, amávamos o que amávamos, mas não éramos capazes de nomear esses sentimentos, esses sofrimentos, esses amores. Não tínhamos a profundidade e, pior, nossa autocompreensão era limitada.
De certa maneira, como na iluminação borgeana, de acordo com a qual Kafka “criou” seus precursores, Harold Bloom demonstra que foi Shakespeare quem nos deu um vocabulário e uma gramática, para que pudéssemos ser o que hoje somos, o que sempre fomos, mas não sabíamos comunicar.
Não são muitos os críticos literários que podem ser comparados, sem favor, com os próprios gênios que eles tanto criticam. Não são muitos os críticos literários que fazem literatura, em sentido estrito e canônico, ao fazer crítica literária. Harold Bloom foi um desses poucos.