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Gustavo Nogy

Gustavo Nogy

A culpa é da imprensa

Pixabay (Foto: )

Lula é eleito uma vez, duas vezes. Rifa a democracia, loteia o Congresso, vende o Brasil às empreiteiras. A culpa é dele? Não, é da imprensa. Que não denunciou. Que denunciou demais. Que ajudou o governo. Que atrapalhou o governo. O jornalista gringo noticia os hábitos etílicos do então presidente: fora com o jornalista, não com o presidente. Antes um presidente ébrio que um jornalista sóbrio. Em seguida, como um desastrado Geppetto, Lula dá vida a Dilma. Dilma é eleita, reeleita (ê Brasil) e termina o desastre começado pelo criador. A culpa é da imprensa. Aécio Neves perdeu? Perdeu por causa da imprensa. Lula livre, Lula preso? Tudo depende da imprensa, sensacionalista aqui, cúmplice ali.

Aliás, é da imprensa a responsabilidade pela ascensão dos militares, em 64, e também dela é a responsabilidade pela ascensão do comunismo. Na dúvida, na dor de cabeça, na dor de barriga, na dor de burrice, a culpa é da Globo. Ou da Folha. Ou da Veja. Ou, agora, da Gazeta do Povo, que contrata gentinha como eu para escrever e opinar.

O mundo gira, o Brasil gira em falso, Jair Bolsonaro é eleito. Tropeça nas próprias palavras, fala o que não pode, informa o que não sabe, ninguém logra acompanhar os rumos da prosa de seu governo e, por óbvio, elementar, meu caro Watson, a culpa só pode ser da imprensa. Que não entende nada ou quer entender mais do que deve. Ele antecipa demissões, suspende demissões, confirma demissões: culpa de vocês sabem quem.

Jean Wyllys, enquanto faz política online do exílio europeu, cheio daquela consciência moral que só ele acredita ter, acusa a jornalista Miriam Leitão de ser uma das responsáveis pela vitória do Bolsonaro. A culpa é dela, porque não criticou o bastante. Dela e de seus colegas. O eleitor que votou porque quis não teve nada com isso. Quem votou no próprio Jean Wyllys também não teve nada com isso. A culpa é da Globo. Do BBB.

Sérgio Moro, quando juiz, divulga áudios entre Dilma e Lula: a culpa é da imprensa, que gosta de espetáculo. Mais tarde, alguém divulgará animadas conversas entre juiz e promotor, e eles não gostam nadinha. A audiência pede o quê? Pede, manda, exige que deportemos o jornalista que fez isso, porque o erro é só de quem publicou a conversa, não de quem conversou.

E a reforma da Previdência, por que demora tanto para ser aprovada? Demora porque a imprensa atrapalha, ora essa, por que mais seria? A imprensa reverbera as colisões entre Executivo, Legislativo e Judiciário, dá atenção às vaidades de Bolsonaro, Alcolumbre e Maia, questiona a futurologia de Guedes, e isso não pode acontecer numa democracia. Numa democracia, senhoras e senhores, a inocência do povo tem de ser preservada como a pureza da virgem.

O jornalista de carreira, matusalém de redação, ganhando a vida desde que Johannes Gutenberg adaptou a prensa, quando quer criticar os desafetos ideológicos, contra ou a favor do governo, faz o quê? Acusa os desafetos de se submeter à mesma imprensa para a qual, na qual, sempre trabalhou. Ele é o superego num mundo de ids e de egos. Quando a chapa esquenta, fica branca.

Também o criador e propagador de fake news responsabiliza a imprensa pelas fake news criadas e propagadas por ele. A imprensa alternativa culpa a imprensa mainstream. O empresário com jeito de vilão do James Bond pede a demissão da jornalista. O leitor e eleitor pede a cabeça do colunista. O defensor do Lula e o defensor do Bolsonaro, o âncora demitido e o menino recém contratado – todos, todos sabem que o único, o maior, o verdadeiro problema do país é a imprensa. Vamos acabar com a imprensa antes que seja tarde, de uma vez por todas.

O resto?

Com o resto está tudo certo.

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