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A Gloriosa faz aniversário

Rio de Janeiro, dia do golpe (31/3/64): tanque para em frente à casa do presidente deposto João Goulart (Foto: )

No próximo dia 31, o governo comemora – oficialmente – o golpe de 64, a pedido de Jair Bolsonaro.

De acordo com o presidente, não houve golpe, não houve ditadura, os militares salvaram o país do comunismo. O vice Hamilton Mourão, no quesito revisionismo-enredo, está alinhado: já declarou mais de uma vez que estávamos numa guerra, e “guerra é guerra”, o que justificaria os “excessos”.

Mortes, tortura, prisões, censura, cassação de direitos políticos. Excesso no dos outros é democracia.

Excessos inclusive do excessivo Emílio Garrastazu Médici, amigo de – e admirado por – Mourão.

Já escrevi sobre o golpe e a conjuntura político-institucional da época. A quem interessar possa, sugiro consultar “Uma nota de rodapé ao golpe de 1964”, no livro Saudades dos cigarros que nunca fumarei (Record). Termino aqui o que comecei lá.

Quem defende uma revisão do período pondera que existia, sim, risco iminente de quebra de ordem institucional e instalação do comunismo. Não duvido. A Guerra Fria estava quente, a União Soviética rivalizava com os EUA, Cuba exportava a imagem – retifico: a miragem – do paraíso comunista, Jango era atordoado como Dilma e voluntarioso como Ciro.

Nisso, os militares resolveram botar ordem na casa, antes que os guerrilheiros tocassem fogo no circo.

De acordo com Sobral Pinto, católico observante e entusiasta de primeira hora do regime, a ideia era convocar eleições livres e diretas alguns meses após o golpe, e assim entregar o governo de volta aos civis. Toma que o filho é teu. Castelo Branco parecia ter essa intenção.

O problema é que por mais de um motivo os militares gostaram do poder, instalaram-se no troninho, fizeram o que tinham de fazer e decidiram ficar. E ficaram. E ficaram. E ficaram. Sentados no troninho, lendo e censurando jornal.

Sobral Pinto retirou seu apoio e foi um dos mais destemidos críticos da ditadura.

Conforme os de verde-oliva iam se acomodando, a vontade de permanecer aumentava, e com a vontade aumentava o arbítrio. Como dizem no futebol, gostaram do jogo. As células comunistas foram desbaratadas? Muito bem, desbaratemos as vindouras. Desbaratemos qualquer coisa que nos pareça comunista. Desbaratemos qualquer coisa que nos pareça célula. Urge um governo unicelular! O cidadão ideal é uma ameba treinada na educação moral e cívica e nos retumbantes valores do hino nacional.

De resto, o povo não sabe se governar; governemo-lo.

Ditadura, pois, para cortar caminho.

Ditadura que, registre-se, foi das menos mortíferas na América Latina e arredores.

“Você vai mesmo comparar ditaduras?”

Vou mesmo comparar ditaduras. Ditaduras se comparam com ditaduras, não com teleféricos, jogos de videogame, verduras. Nem com democracias.

A comparação, que a esquerda não aceita fazer de jeito nenhum, serve para julgar o cenário todo. Fernando Gabeira, homem de coragem e então militante de esquerda, já disse mais de uma vez que eles não lutavam por democracia, mas pela sua própria versão de ditadura – a do proletariado.

Parêntese: a esquerda não gosta da comparação também pelo fato de que teria de admitir a sua versão de ditadura. Isso, nem morta. Fecha parêntese.

O que não significa que os militares lutassem por democracia. Democracia é cosmética para corporações militares; é o blush da nação. Lutavam para manter o próprio poder e, com o intuito de mantê-lo, fizeram o que bem entenderam que devia ser feito.

Mortes, tortura, prisões, censura, cassação de direitos políticos. Excessos.

Excessos que também foram cometidos por alguns assassinos e bandidos à moda antiga, que figuravam entre os militantes mais idealistas. Nem todos pegaram em armas, nem todos foram violentos, mas os que foram, foram de verdade. Era pouco inferno para muito pecador, na época.

Moral da história: preocupado meeeesmo com liberdade civil e direitos humanos, ninguém estava.

Contudo, entre a potência e o ato há uma distância. Havia, se é que havia, ameaça potencial de ditadura comunista. Paulo Francis, no Trinta anos esta noite, nega o risco. Para ele, nossa guerrilha era de fancaria e teria acabado com “um soldados e um cabo”, e existia muito mais bagunça que propriamente ideologia.

Mas a verdade é que apesar da potencial ditadura comunista, houve, em ato, a ditadura militar. Foram mais de vinte anos de arbítrio, prisões, mortes, tortura, perseguições, estatização, endividamento. Mais de vinte anos de ato in progress, de um Ato que não se justifica.

Por qualquer ângulo que se olhe, não temos motivo nenhum para soprar velinhas.

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