Já faz tempo que me incomodam os apelos a manifestações emotivas nos programas de televisão e nas matérias jornalísticas. Que o jornalismo de entretenimento viva de sentimentalismo predatório, estamos acostumados; que isso tenha se transformado numa imposição, não deveríamos nos acostumar.
Repórteres entrevistam sobreviventes de tragédias, pais que perderam filhos, filhos que perderam pais, moças estupradas, moços estupradores, cachorros levados pela enchente, pobres-diabos em geral, para saber deles o que estariam sentindo. Para arrancar deles a cárie sem anestesia. Como se naquele momento fosse possível sentir outra coisa que não tristeza, desamparo, raiva, medo, solidão, vergonha.
Ultimamente, a tentativa de explorar as emoções e as fragilidades vai se tornando ainda mais teatral. Quando não há emoções, inventamos as emoções, porque emocionar é preciso. Não é raro que celebridades, subcelebridades – e, por exemplo, jogadores como Neymar – finjam dores que deveras não sentem, apenas porque sim, apenas porque faz parte desses nossos tempos simular até a dor verdadeira. Precisamos de uma versão extrema, exacerbada, circense, daquilo que sentimos.
Nem sempre o sentimento autêntico é bonito de se mostrar. É como o beijo de verdade, ou mesmo o sexo: não é bem-feito, arrumado, coordenado e plástico como nos filmes. Então inventamos um sentimento postiço, que se sobrepõe ao sentimento genuíno ou a sentimento nenhum. O que importa é o que parece acontecer, não o que acontece. Porém, algo tem de acontecer. Precisamos de audiência, precisamos interagir com o distinto público, explorar as emoções verdadeiras ou fabricar outras, vender o peixe, capitalizar as lágrimas, extrair o siso, forçar o riso.
Ontem, depois do jogo entre Santos e Vasco, aconteceu um desses casos que deveriam envergonhar até os seixos da praia de Santos.
O time da Vila Belmiro venceu por 3 a 0. O primeiro gol aconteceu em virtude de falha técnica – em português: frango – do goleiro Sidão. Ele tem uma carreira conturbada, cheia de altos e baixos, mais cheia de baixos que de altos, e falhou novamente.
Ocorre que a Rede Globo tem de arrumar essas promoções para seduzir a audiência, e a deste ano é a seguinte: o amigo internauta, com toda a imemorial sabedoria de quem nasceu depois do bug do milênio, escolhe, por votação, o “craque do jogo”, e o felizardo craque do jogo ganha, ao sair de campo, um troféu mixuruca para segurar a porta.
Pois o amigo internauta, com a empatia de um agente da SS, teve a brilhante ideia de eleger justamente Sidão, o pior em campo, como o melhor em campo. Resultado: Sidão ganharia o troféu.
Eu assistia ao fim da partida, incrédulo. Torci, implorei, rezei para que os responsáveis pela transmissão tivessem bom senso, suspendessem a entrega do prêmio e esclarecessem: “O amigo internauta quis brincar hoje, e elegeu o Sidão, que teve dia infeliz, como o craque. Então não entregaremos o troféu desta vez”.
Explicação razoável, decente, justa.
Mas não. Devemos fustigar a dor alheia, custe o que custar. Temos uma dor autêntica aí com a qual trabalhar, não percamos a oportunidade, custa caro inventar uma dor cenográfica. Enfiemos o ferrinho de dentista no nervo alheio, porque, afinal de contas, é alheio mesmo, quem se importa? O amigo internauta não pode ficar sem sua ração estragada para engolir.
Ao sair de campo, uma constrangida repórter – constrangida, porém cumpridora de deveres – abordou o goleiro. Perguntou do jogo, sem querer saber do jogo, pois logo questionou seu desempenho. Sidão admitiu a o erro, e mais: admitiu que foi responsável pela derrota do time.
Ainda assim, a constrangida repórter – constrangida, porém cumpridora de deveres – disse ao goleiro que ele ganhava o prêmio por ter sido escolhido o… craque do jogo. A cumpridora de deveres parece ter se emocionado, mas fez o que lhe mandaram fazer.
E o goleiro seguiu vagaroso, “de mãos pensas”, amparado por um colega.
O amigo internauta, agente da SS virtual, que a essa altura terá urrado como a besta que é e sempre será, pôde enfiar na boca sua cota de ração estragada, beber seu gole de cerveja quente, e esquecer que esqueceu nalgum canto da vida a compaixão necessária, sem nem mesmo avaliar o que perdera.