O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, saiu da obscuridade administrativa onde vive para obscurecer a Bienal onde não sabe viver. Na falta de medidas e ações úteis à cidade, na impossibilidade de uma gestão eficaz, tratou de brandir sua própria versão da Constituição, uma Constituição que, se ele pudesse, faria as vezes de sharia.
A propósito, a essa altura deveria ser desnecessário explicar, tim-tim por tim-tim, a natureza do rocambole jurídico que viu na representação gráfica de um beijo gay, numa HQ entre milhares, motivo para acusações de pornografia e atentado contra os bons costumes. O artigo 5º, IX, garante a livre manifestação intelectual, científica, artística e de comunicação, “independentemente de censura ou licença”.
Não se apressem em apontar no art.78 do Estatuto da Criança e do Adolescente a justificação do ato, dado que lá consta que “as revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada, com a advertência de seu conteúdo”, e que “as editoras cuidarão para que as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca”.
Tais linhas não justificam o recolhimento ou a proibição do material. Primeiro, porque a representação de um beijo homossexual não significa, nem nos mais farisaicos delírios do prefeito ou de quem quer que seja, pornografia. Segundo, porque a Carta Magna proíbe a discriminação em virtude de quaisquer preconceitos, inclusive os de orientação sexual, no artigo 5º (caput) e no artigo 3º, IV.
Não bastasse isso, lembra o advogado e mestre Horacio Neiva que o STF enfrentou a questão “na ADI 4277, em que... reconheceu as uniões estáveis homoafetivas. O Tribunal entendeu que qualquer leitura da Constituição ou das leis que implique em diferenciação entre casais hetero ou homoafetivos viola postulados da igualdade e dignidade”. Do ponto de vista jurídico, não é preciso dizer mais.
Entretanto, algumas discussões não são o que parecem ser. Crivella sabe que sua medida não tem respaldo na jurisprudência ou na Constituição; do ponto de vista ético, por sua vez, esbarra num momento em que a imposição de certos preceitos e a proibição de certas condutas não são atitudes bem-recebidas no debate público. Sejamos conservadores ou não, religiosos ou não, o Estado contemporâneo tem de estar aberto às variações dos modos de vida e das manifestações de afeto.
O moralismo de ocasião não é mais do que manifestação arbitrária de poder. Demagogos estimulam e atendem às reações de seus eleitores, tudo feito com muito cálculo e método. Testam limites e humores. Na condição de sepulcros caiados e de Pilatos tardios, não sabem distinguir um pecador de um santo. Então exibem na praça a obscenidade de sua indignação, os gemidos de seu escândalo, as pudendas partes de seu populismo. À direita e à esquerda, políticos fomentam o alarmismo ético e a sanha persecutória, porque é só assim que governam, só assim que sabem governar.
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