Mais de duzentas pessoas ainda estão sob a lama em Brumadinho, mas os urubus ideológicos não podem esperar: precisam remexer no que resta da dignidade há muito apodrecida e ver se encontram algum alimento que preste.
Não vou me ocupar das elucubrações vindas daqueles que acreditam, a sério, que o desastre possa ter sido um atentado terrorista pago com dinheiro do magnata George Soros; isso é assunto para psiquiatras ou exorcistas, vocações nobres e socialmente relevantes que merecem todo o meu respeito.
Comento a desfaçatez com que certa esquerda, aspas, pensou o problema. Aspas porque não pensou: reagiu com a mesquinhez habitual e tentou emplacar suas ideias – ou falta de ideias. E, fique registrado, não se trata só da esquerda em sentido estrito, mas de todo esse indiscriminado elenco de piratas éticos e adestradores de militância que circundam as redações, os partidos e as ongs.
Aproveitaram-se das mortes e converteram a tragédia em truque retórico contra o capitalismo, o capitalismo inteirinho, das primeiras horas da Revolução Industrial ao último modelo de iPhone. Sinto informar, mas estão enganados: defender o capitalismo não é defender a Vale; defender a Vale não é defender o capitalismo.
Ao contrário: quem defende o capitalismo (nome estigmatizado, aliás) defende o processo de mercado, a destruição criativa, o empreendimento e a bancarrota. Sim, isso mesmo: para o mercado, uma empresa que dá certo vale muito; uma empresa que não dá certo também.
Cada empresa que declara falência e fecha as portas significa duas coisas: primeiro, haverá uma empresa ineficiente a menos no mercado; segundo, as informações e conhecimentos a respeito dessa quebra serão úteis para os novos empreendedores. O empresário inteligente aprende com os próprios erros e, se for muito inteligente, com os erros dos outros.
Em Brumadinho, a Vale cometeu crime ambiental de proporções ainda incalculáveis. Além dos muitos danos materiais, os danos humanos: irredimíveis. Pois se cometeu crime e tem responsabilidade objetiva, terá de pagar por ele, observado o processo legal e distribuídas as responsabilidades. Que indenize as famílias e, se preciso for, feche as portas, dando lugar a outras empresas mais eficientes e adequadas a padrões técnicos e ambientais seguros e sofisticados.
Defender o processo de mercado genuíno, por esse motivo, não é defender a Vale. Defender o empreendedorismo e o empresário não é defender este empreendedor, aquele empresário. Quem erra tem de reparar o erro; quem deve tem de pagar; quem comete crimes tem de sofrer sanções e cadeia.
Não obstante, também importa notar que crimes ambientais (e humanitários, em escala ainda maior) nunca foram exclusividade do capitalismo. As estatais têm longa ficha corrida nesse tipo de problema, com um agravante: são órgãos do Estado, não declaram falência, não se responsabilizam por nada. Pior: provocam desastres e os contribuintes pagam a conta.
Outro aspecto a ser considerado. O Brasil está far far away de qualquer coisa que se pareça com um capitalismo selvagem de verdade. Temos aqui o capitalismo de compadrio, o incestuoso conluio entre empresários e políticos, entre técnicos e fiscais, entre prefeitos e investidores. Selvagens são os impostos, as regulações draconianas, os subsídios e as restrições à concorrência.
Notem que não se trata de pregar um mercado absolutamente desregulamentado. Não vivemos numa comunidade anarcocapitalista, feliz ou infelizmente, e por isso precisamos pensar no Estado que temos, na sociedade e no mercado possíveis. Regulações são necessárias, mas têm de ser feitas com o objetivo de maximizar a eficiência e a aplicação dos melhores procedimentos.
Isso não é feito nessa versão espúria, muito nossa, de livre mercado. Um ambiente de negócios menos livre e amigável que os pujantes mercados de Etiópia, Gambia, Zambia, Uzbequistão, Haiti, Camarões e o saudoso Egito dos faraós, entre tantos (mas estamos à frente do Níger). Gazeta do Povo publica com exclusividade o índice de liberdade econômica da Heritage Foudation, e Jones Rossi aproveita para provocar: “O Brasil deturpou o capitalismo”.
A conclusão a que podemos chegar, caso sejamos suficientemente honestos, é que o capitalismo à brasileira tem de melhorar muito para ter o direito de vestir tanga, empunhar tacape e sair por aí caçando homem branco e fazendo fogo a fricção.
O que temos é a pior versão possível de dois mundos: poucas empresas protegidas da concorrência pelo Estado, e um mercado proibido de se abrir à concorrência por causa do Estado. Nesse meio, empresas não têm incentivos para acertar e falham muito além dos limites da decência.
Tudo considerado, não descuidemos de uma questão: a cobiça é um dos pecados mais praticados, e o mal está no centro do coração humano. Contra isso, somente medidas de outra natureza são cabíveis. Mas daí é uma história além da história.