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Gustavo Nogy

Gustavo Nogy

Aprendendo russo

Matryoshka (Pixabay imagens) (Foto: )

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por Nicolau Olivieri

Sabe aquele W de ângulos retos? Assim: ш. Então, esse é o chá, com o som de ch. Mas tem também o chá com um rabo: щ. Esse é o chchá, um chá ainda mais chiado, fortemente chiado. Mesmo um carioca tem alguma dificuldade. Isso sem contar o ч, que é o tchá. No primeiro dia de aula descobrimos esse tipo de coisa. Ouvindo o professor falar, mostrando as letras e os sons que elas fazem, eu cheguei a pensar que conseguiria até memorizar uma ou outra coisa, mas seria absolutamente impossível ler – quanto mais pronunciar – uma palavra com essas letras malucas, conquanto lindas (não acham lindas? Eu acho). Enquanto ele falava sobre os vários is diferentes da língua russa, eu tomei a liberdade de olhar o livro de exercício duas páginas à frente. Exercício número 6. “Impossível”, pensei convicto, “absolutamente impossível um dia chegar a esse ponto”.

Falando nos vários is da língua russa, tem um especialmente difícil de pronunciar, um i mais gutural, que não tem muita correspondência em português. Às vezes tem isso, certas coisas que a gente aprende que não usa nunca, tipo um gringo aprendendo a segunda pessoa do plural em português. Existe, mas não faz muita diferença se você não aprender. Torci para que fosse o caso de uma ocorrência rara na língua. Esperança vã. Para se ter uma ideia, quase todos os plurais de palavras masculinas são formados pelo tal i. Se tem uma letra de que eles gostam é esse tal de i. Isso pra não falar em letras que não têm som, servem para abrandar ou endurecer a consoante que acompanha. E isso para não falar também nas trocentas declinações, e olha que em russo se declina a porra toda, nomes próprios, numerais e o escambau. De modo que cada palavra pode ter até doze variações dela mesma, considerando as seis declinações no feminino e no masculino.

Mas, para quem me pergunta por que porra eu fui, já velho de guerra, aprender russo, a única resposta que me ocorre é uma outra pergunta: por que alguém não desejaria aprender russo? Sério, não entendo por que alguém, tendo a oportunidade, não vai querer aprender essa língua que está no limite da civilização ocidental, aquelas letras maravilhosas, a língua de alguns dos maiores, talvez os maiores, romancistas da história. Alemão? Desculpe, feio. Espanhol, desculpe de novo, mas não resiste à comparação. Faça o teste do “eu te amo” em várias línguas e veja se tem algum que soa mais bonito do que “я люблю тебя”. Até tem uma língua com um “eu te amo” mais bonito, mas essa língua eu já conheço, embora pouco: o português mesmo.

Num ano especialmente difícil, como são todos os anos de todos nós, não?, mas um ano de desafios diferentes, mudanças, algumas até meio dramáticas, um ano que vai terminar de um jeito muito diferente do que começou, fazer os módulos I e II do projeto “Russo no Campus”, do Departamento de Letras Orientais da FFLCH, foi um prazer incrível. Todo sábado, na USP, das 10 às 12 horas. Depois, na volta, aproveitava para beber duas ou três cervejas com os amigos da Beer 4u Vila Madalena. Uma rotina bem gostosa. E voltar a estudar, quer dizer, começar a estudar algo do zero. Isso foi muito bacana. Ao longo da semana sentar a bunda na cadeira e rever exercícios, refazer exercícios, exercícios e exercícios, escrever, escrever e escrever treinando bem o desenho das letras. Estudar para um parecer, um processo, uma consulta é algo que eu faço profissionalmente, e sei como fazer. Sou pago pra isso. Sei o caminho das pedras. Mas estudar uma língua na qual você tem que se alfabetizar, isso realmente é diferente. E, emocionado, descobri que ainda sei aprender. Era uma dúvida que eu tinha.

Chegando ao final do módulo II e passando na prova com um belo 9,7 (me permitam tirar essa onda), eu tenho um vocabulário de talvez umas quarenta palavras básicas e conheço parcialmente três das seis declinações. Há muitos continentes a serem explorados na língua russa, e sou incapaz de entender uma frase a não ser que eu dê a sorte de conhecer as palavras e desde que as palavras estejam nas declinações que eu já sei. Dizem que os verbos de movimento russos são dificílimos. Aliás, os verbos aprendemos somente no modo imperfeito, e ainda falta saber os verbos no modo perfeito. Ainda assim, lá para outubro um dos exercícios foi de ler uma carta de um sueco, Sven, para sua mulher, Helga. Exercício 97 eu acho. Sven contava como era sua vida em São Petersburgo. Acabou o texto e seguimos os exercícios. Depois olhei de novo o texto e me dei conta de que “caralho puta que o pariu” eu tinha entendido a porra toda. Que coisa fantástica aprender uma língua nova. Que aventura. Você começa tentando – tentando – decorar os sons das letras e, alguns meses depois, aquelas letras viram palavras e frases e, embora ainda num estágio bastante inicial, as frases começam a fazer algum sentido. Dizer que é um novo “universo” não é uma metáfora, é a pura descrição da realidade.

Mas a língua não se desvela sozinha, e nesse ponto eu tive uma grande sorte: um professor espetacular. É impossível qualquer mortal transformar a língua russa em algo fácil, mas ele consegue transformar a língua russa em algo possível, quando não plausível, o que é foda.

Uma vez eu estava aqui estudando em casa, e falando em voz alta, acho que eram numerais, e o filho mais velho, o especial, caía na gargalhada cada vez que eu falava: “двенадцать”, aí ele KKKKKKKK!, “тринадцать”, KKKKKKKK!. Ele chegou a chorar de rir. Uma pessoa muito querida, francófona, dizia que meu sotaque de francês é muito parecido com o do Ministro do Exterior do Congo. “Melhor do que se fosse do Quebec”, eu respondia. Aí fiquei pensando como deve soar para o meu filho um pai às sextas-feiras em casa falando alto palavras incompreensíveis de uma língua estranha. Eu espero um dia ser capaz de ler um conto curto e simples de Tchekhov, o que talvez aconteça daqui mais uns dez ou quinze anos, se eu continuar estudando russo com a mesma seriedade. Se não conseguir essa proeza, espero que pelo menos fique na lembrança do meu filho esses momentos de comédia.

Na minha lembrança, de todo modo, ficará a cena de uma turma multicolorida, de todas as idades, e um professor com a camiseta (Футболка – rá!) com temática de Star Wars, escrevendo lindas palavras no alfabeto cirílico na lousa.

Uma deliciosa manhã de sábado para aprender russo, e depois tomar uma cerveja.

Nicolau Olivieri é sócio na Leal Cotrim Jansen Advogados. Membro do Instituto de Advogados Brasileiros. E, como se vê, estudante de russo.

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