Quando li sobre o feito da capitã Carola Rackete, detida há poucos dias ao atracar na ilha de Lampedusa, Itália, depois do resgate de quarenta imigrantes, eu me lembrei da corajosa Antígona, que desobedeceu às leis da cidade e desafiou o rei Creonte, em nome da “Lei não escrita”. A contragosto do Creonte da vez, Matteo Salvini, ministro do Interior, o processo que poderia condená-la à prisão foi arquivado.
O fluxo migratório é, sem dúvida, um problema complexo demais para ser resolvido somente com boas intenções; existem razões de Estado e de economia que devem ser ponderadas e medidas. No entanto, as precauções com os possíveis efeitos colaterais (terrorismo? desemprego?) do trânsito de imigrantes não podem servir de adubo, como têm servido, para o recrudescimento de impulsos mais tribais que políticos, mais racistas que jurídicos. De repente, a grande e nunca pensada solução é fechar as fronteiras, ponto final.
O escritor Mario Vargas Llosa, liberal insuspeito, observa que “(...) o fundamental na Europa é a transformação da mentalidade. Abrir as fronteiras a uma imigração que é necessária e regulá-la de modo que seja propícia, e não fonte de divisão e de racismo, nem sirva para incrementar um populismo que no passado provocou consequências tão horrendas”.
O problema vai além do direito positivo e toca em questões-limite de moral, objeção de consciência, desobediência civil pacífica e, last but not least, de compaixão. A Europa vê renascer, com mais ou menos vigor a depender do país, certo entusiasmo pelas ideias de nacionalidade, de pátria, de pertencimento, de solo e de sangue, como se já tivéssemos nos esquecido das tétricas experiências de tão poucas décadas atrás. O nacionalismo está virando solução mais uma vez.
Nada mais longe dos princípios – escritos e não escritos – do Ocidente liberal e civilizado. O Estado de Direito e os tratados internacionais devem garantir a abertura ao diferente e ao múltiplo, ao estrangeiro e ao exilado, sem que isso comprometa o patrimônio cultural e os valores que sustentam esse arranjo. Essa é a “ideia de Europa”, como se aprende num ensaio de George Steiner.
As catástrofes políticas do século XX não foram provocadas por estrangeiros, imigrantes, náufragos e degredados; antes, foram engendradas por homens que se orgulhavam da própria ascendência, que afirmavam a pureza da própria origem, e por isso entenderam o Estado como fenômeno ensimesmado e hostil, e não como espaço político e moral de convivência e acolhimento.
É preciso cuidado – e, mais do que cuidado, sabedoria histórica – para não confundir com tanta facilidade o cuidado do próximo com o desprezo do distante, a proteção da cidade com a guerra sem propósito. Afinal, temos de nos esforçar mais para merecer que um dia, na pátria que não é deste mundo, lá onde não haverá nem judeu nem grego, nem liberto nem escravo, Cristo nos possa dizer: “Fui estrangeiro, e me acolhestes. Estava nu, e me cobristes”.